A Gênesis

 
 
 
 

 

 

 NUMA LINGUAGEM SIMPLIFICADA

Adaptação:

L. NEILMORIS 2 – Allan Kardec

A GÊNESE

Os Milagres e as Predições Segundo o Espiritismo

Allan Kardec

Versão digital Numa Linguagem Simplificada

Adaptada por:

Louis Neilmoris

Título original em francês:

LA GENÈSE

Les Miracles et lês Prédictions Selon el Espiritisme

Lançado em 6 de janeiro de 1868

Paris, França

Revisada em outubro, 2011 3 – A GÊNESE

A GÊNESE

NUMA LINGUAGEM SIMPLIFICADA

Allan Kardec

Adaptação:

LOUIS NEILMORIS 4 – Allan Kardec

Nota da adaptação

A proposta deste trabalho é trazer ao meio popular o consolo e a iluminação de A GÊNESE, escrito pelo memorável Codificador Allan Kardec, sob a orientação de mentores espirituais, uma profunda abordagem acerca da natureza universal, indispensável para a compreensão do nosso cotidiano.

Mas, convenhamos, as traduções brasileiras, até então disponíveis, ainda oferecem à grande massa popular graves obstáculos para uma perfeita compreensão, não por falha dos tradutores – muito pelo contrário, mas pela fidelidade com que verteram dos originais em francês para o português, mantendo a elevada elocução. Kardec, eminente autoridade em linguística, evidentemente, só poderia escrever à altura do superior nível cultural de seus contemporâneos. Desta forma, e nada mais justo, as versões procuram sempre equilibrar a linguagem.

Esta adaptação procura simplificar o texto utilizando-se de vocábulos mais comuns, mais atualizados, no entanto, sem alterar o teor da argumentação.

As novas verdades que a maravilhosa Doutrina Espírita nos traz devem estar ao alcance de todos, por uma questão de respeito e de amor.

Louis Neilmoris 5 – A GÊNESE

A Gênese

OS MILAGRES E AS PREDIÇÕES

SEGUNDO O ESPIRITISMO

A Doutrina Espírita há resultado do ensino coletivo

e concordante dos Espíritos.

A Ciência é chamada a constituir a Gênese

de acordo com as leis da Natureza.

Deus prova a sua grandeza e seu poder pela imutabilidade

das suas leis e não pela ab-rogação delas.

Para Deus, o passado e o futuro são o presente

P O R

ALLAN KARDEC 6 – Allan Kardec

Sumário

Introdução – pag. 10

A Gênese

CAPÍTULO I — Caráter da revelação espírita – pag. 13

CAPÍTULO II — Deus – pag. 35

Existência de Deus

Da natureza divina

A Providência

A visão de Deus

CAPÍTULO III — O bem e o mal – pag. 46

Origem do bem e do mal

O instinto e a inteligência

Destruição dos seres vivos uns pelos outros

CAPÍTULO IV — Papel da Ciência na Gênese – pag. 56

CAPÍTULO V — Antigos e modernos sistemas do mundo – pag. 62

CAPÍTULO VI — Uranografia geral – pag. 68

O espaço e o tempo

A matéria

As leis e as forças

A criação primária

A criação universal

Os sóis e os planetas

Os satélites

Os cometas

A Via-Láctea

As estrelas fixas

Os desertos do espaço

Eterna sucessão dos mundos

A vida universal

Diversidade dos mundos

CAPÍTULO VII — Esboço geológico da Terra – pag. 92

Períodos geológicos

Estado primitivo do globo

Período primário

Período de transição

Período secundário

Período terciário

Período diluviano

Período pós-diluviano, ou atual. Nascimento do homem 7 – A GÊNESE

CAPÍTULO VIII — Teorias sobre a formação da Terra – pag. 110

Teoria da projeção

Teoria da condensação

Teoria da incrustação

Alma da Terra

CAPÍTULO IX — Revoluções do globo – pag. 116

Revoluções gerais ou parciais

Idade das montanhas

Dilúvio bíblico

Revoluções periódicas

Cataclismos futuros

Aumento ou diminuição do volume da Terra

CAPÍTULO X — Gênese orgânica – pag. 125

Formação primária dos seres vivos

Princípio vital

Geração espontânea

Escala dos seres orgânicos

O homem corpóreo

CAPÍTULO XI — Gênese espiritual – pag. 136

Princípio espiritual

União do princípio espiritual à matéria

Hipótese sobre a origem do corpo humano

Encarnação dos Espíritos

Reencarnações

Emigrações e imigrações dos Espíritos

Raça adâmica

Doutrina dos anjos decaídos e da perda do paraíso

CAPÍTULO XII — Gênese moisaica – pag. 156

Os seis dias

Perda do paraíso

Os Milagres

CAPÍTULO XIII — Caracteres dos milagres – pag. 172

Os milagres no sentido teológico

O Espiritismo não faz milagres

Deus faz milagres?

O sobrenatural e as religiões

CAPÍTULO XIV — Os fluidos – pag. 181

I. NATUREZA E PROPRIEDADES DOS FLUIDOS

Elementos fluídicos

Formação e propriedades do perispírito

Ação dos Espíritos sobre os fluidos. Criações fluídicas.

Fotografia do pensamento

Qualidades dos fluidos 8 – Allan Kardec

II. EXPLICAÇÃO DE ALGUNS FENÔMENOS CONSIDERADOS SOBRENATURAIS

Vista espiritual ou psíquica. Dupla vista. Sonambulismo. Sonhos

Catalepsia. Ressurreições

Curas

Aparições. Transfigurações

Manifestações físicas. Mediunidade

Obsessões e possessões

CAPÍTULO XV — Os milagres do Evangelho – pag. 204

Superioridade da natureza de Jesus

Sonhos

Estrela dos magos

Dupla vista

Entrada de Jesus em Jerusalém

Beijo de Judas

Pesca Milagrosa

Vocação de Pedro, André, Tiago, João e Mateus

Curas

Perda de sangue

Cego de Betsaida

Paralítico

Os dez leprosos

Mão seca

A mulher curvada

O paralítico da piscina

Cego de nascença

Numerosas curas operadas por Jesus

Possessos

Ressurreições

A filha de Jairo

O filho da viúva de Naim

Jesus caminha sobre a água

Transfiguração

Tempestade aplacada

Bodas de Caná

Multiplicação dos pães

O fermento dos fariseus

O pão do céu

Tentação de Jesus

Prodígios por ocasião da morte de Jesus

Aparição de Jesus, após sua morte

Desaparecimento do corpo de Jesus

As Predições

CAPÍTULO XVI — Teoria da presciência – pag. 234

CAPÍTULO XVII — Predições do Evangelho – pag. 242

Ninguém é profeta em sua terra

Morte e paixão de Jesus

Perseguição aos apóstolos 9 – A GÊNESE

Cidades impenitentes

Ruína do Templo e de Jerusalém

Maldição contra os fariseus

Minhas palavras não passarão

A pedra angular

Parábola dos vinhateiros homicidas

Um só rebanho e um só pastor

Advento de Elias

Anunciação do Consolador

Segundo advento do Cristo

Sinais precursores

Vossos filhos e vossas filhas profetizarão

Juízo final

CAPÍTULO XVIII — São chegados os tempos – pag. 262

Sinais dos tempos

A geração nova 10 – Allan Kardec

Introdução

À PRIMEIRA EDIÇÃO PUBLICADA EM JANEIRO DE 1868

Esta nova obra é mais um passo dado ao terreno das consequências e das aplicações do Espiritismo. Conforme seu título indica, ela tem por objetivo o estudo dos três pontos até agora diversamente interpretados e comentados: a Gênese1, os milagres e as predições2, em suas relações com as novas leis que vêm da observação dos fenômenos espíritas.

1 Gênese: origem, princípio – Nota do Digitador.

2 Predição: previsão, profecia – N. D.

Dois elementos, ou, se quiserem, duas forças regem o Universo: o elemento espiritual e o elemento material. Da ação simultânea desses dois princípios nascem fenômenos especiais, que se tornam naturalmente inexplicáveis, desde que se tire de um deles, do mesmo modo que a formação da água seria inexplicável, caso se tirasse um de seus elementos constituintes (o oxigênio ou o hidrogênio). Demonstrando a existência do mundo espiritual e suas relações com o mundo material, o Espiritismo fornece a chave para a explicação de uma imensidade de fenômenos incompreendidos e por isso considerados inadmissíveis, por parte de certa classe de pensadores. Esses fatos sobram nas Escrituras e, por desconhecerem a lei que os rege, é que os comentadores – nos dois campos opostos – não conseguiram chegar a uma solução racional, girando sempre dentro do mesmo círculo de ideias, uns desqualificando os dados positivos da ciência, e outros desprezando o princípio espiritual.

Essa solução se encontra na ação recíproca do Espírito e da matéria. É exato que ela tira o caráter de sobrenaturais da maioria de tais fatos. Porém, que é o que vale mais: admiti-los como resultado das leis da Natureza, ou rejeitá-los? A rejeição pura e simples acarreta a da base mesma do edifício, ao passo que, admitidos a esse título, a admissão, apenas suprimindo os acessórios, deixa a base intacta. Tal a razão por que o Espiritismo conduz tantas pessoas à crença em verdades que elas antes consideravam meras ilusões.

Logo, como já o dissemos, esta obra é um complemento das aplicações do Espiritismo, de um ponto de vista especial. Os materiais se achavam prontos, ou, pelo menos, elaborados desde longo tempo; mas, ainda não chegara o momento de serem publicados. Era preciso, primeiramente, que as ideias destinadas a lhes servirem de base houvessem atingido a maturidade e, além disso, também se fazia necessário levar em conta a oportunidade das circunstâncias. O Espiritismo não contém mistérios, nem teorias secretas; tudo nele tem que estar evidente, a fim de que todos o possam julgar com conhecimento de causa. Entretanto, cada coisa tem que vir a seu tempo, para vir com segurança. Uma solução dada precipitadamente, primeiro que a explicação completa da questão, seria antes causa de atraso do que de avanço. Na de que aqui se trata, a importância do assunto nos cobrava o dever de evitar qualquer precipitação.

Antes de entrarmos no estudo, pareceu-nos necessário definir claramente os papéis respectivos dos Espíritos e dos homens na elaboração da nova doutrina. Essas 11 – A GÊNESE

considerações preliminares, que a afastam de toda ideia de misticismo, fazem objeto do primeiro capítulo, intitulado: “Caráter da Revelação Espírita”. Pedimos séria atenção para esse ponto, porque de certo modo, aí está o nó da questão.

Apesar da parte que toca à atividade humana na elaboração desta doutrina, a iniciativa da obra pertence aos Espíritos, porém não a constitui a opinião pessoal de nenhum deles. Ela é – e não poderia deixar de ser – o resultado do ensino coletivo e concordante dado por eles. Somente sob tal condição se pode chamar Doutrina dos Espíritos. Doutra forma, não seria mais do que a doutrina de um Espírito e apenas teria o valor de uma opinião pessoal.

Generalidade e concordância no ensino: esse o caráter essencial da doutrina, a condição mesma da sua existência, donde resulta que todo princípio que ainda não haja recebido a consagração do controle da generalidade não pode ser considerado parte integrante dessa mesma doutrina. Será uma simples opinião isolada, da qual não pode o Espiritismo assumir a responsabilidade.

Essa coletividade concordante da opinião dos Espíritos, passada, ao demais, pelo critério da lógica, é que constitui a força da Doutrina Espírita e lhe assegura a eternidade. Para que ela mudasse, seria preciso que a união dos Espíritos mudasse de opinião e viesse um dia dizer o contrário do que disse. Pois que ela tem sua fonte de origem no ensino dos Espíritos, para que fraquejasse seria necessário que os Espíritos deixassem de existir. É também o que fará que prevaleça sobre todos os sistemas pessoais, cujas raízes não se encontram por toda parte, como com ela se dá.

O LIVRO DOS ESPÍRITOS só teve consolidado o seu crédito por ser a expressão de um pensamento coletivo, geral. Em abril de 1867, completou sua primeira década. Nesse intervalo, os princípios fundamentais, cujas bases ele assentara, foram sucessivamente completados e desenvolvidos, por virtude da progressividade do ensino dos Espíritos. Porém, nenhum recebeu desmentido da experiência; todos, sem exceção, permaneceram de pé, mais vivazes do que nunca, enquanto que, de todas as ideias contraditórias que alguns tentaram opor-lhe, nenhuma prevaleceu, precisamente porque, de todos os lados, era ensinado o contrário. Este o resultado característico que podemos proclamar sem vaidade, pois que jamais nos atribuímos o mérito de tal fato.

Com os mesmos cuidados que tivemos na redação das nossas outras obras, com toda verdade pudemos dizer que são segundo o Espiritismo, porque estávamos certo da conformidade delas com o ensino geral dos Espíritos. O mesmo sucede com esta, que, por motivos semelhantes, podemos apresentar como complemento das anteriores, com exceção, todavia, de algumas teorias ainda hipotéticas, que tivemos o cuidado de indicar como tais e que devem ser consideradas simples opiniões pessoais, enquanto não forem confirmadas ou contraditadas, a fim de que não pese sobre a doutrina a responsabilidade delas3.

3 Nota da Editora: portanto, cabe ao leitor durante a leitura desta obra, distinguir a parte apresentada como complementar da Doutrina, daquela que o próprio Autor considera hipotética e pessoalmente dele.

Aliás, os fieis leitores da REVISTA ESPÍRITA hão tido ensejo de notar, sem dúvida, em forma de esboços, a maioria das ideias desenvolvidas aqui nesta obra, conforme o fizemos, com relação às anteriores. A REVISTA ESPÍRITA, muita vez, representa para nós um terreno de ensaio, destinado a sondar a opinião dos homens e dos Espíritos sobre alguns princípios, antes de admiti-los como partes constitutivas da doutrina. 12 – Allan Kardec

A Gênese 13 – A GÊNESE

CAPÍTULO I

Caráter da

Revelação Espírita

1. O Espiritismo pode ser considerado uma revelação? Neste caso, qual o seu caráter? Em que se funda a sua autenticidade? A quem e de que maneira ela foi feita? A Doutrina Espírita é uma revelação, no sentido teológico da palavra, ou por outra, é, no seu todo, o produto do ensino oculto vindo do Alto? É absoluta ou suscetível de modificações? Trazendo aos homens a verdade integral, a revelação não teria por efeito impedi-los de fazer uso das suas aptidões, pois que lhes pouparia o trabalho da investigação? Qual a autoridade do ensino dos Espíritos, se eles não são infalíveis e superiores à Humanidade? Qual a utilidade da moral que pregam, se essa moral não é diversa da do Cristo, já conhecida? Quais as verdades novas que eles nos trazem? O homem precisará de uma revelação? E não poderá achar em si mesmo e em sua consciência tudo quanto é preciso para se conduzir na vida? Tais as questões sobre que importa nos fixemos.

2. Primeiro vamos definir o sentido da palavra revelação. Revelar, do latim revelare, cuja raiz, velum, véu, significa literalmente sair de sob o véu — e, figuradamente, descobrir, dar a conhecer uma coisa secreta ou desconhecida. Em sua acepção vulgar mais genérica, essa palavra se emprega a respeito de qualquer coisa ignota que é divulgada, de qualquer ideia nova que nos põe ao corrente do que não sabíamos.

Deste ponto de vista, todas as ciências que aos fazem conhecer os mistérios da Natureza são revelações e pode dizer-se que há para a Humanidade uma revelação incessante. A Astronomia revelou o mundo astral, que não conhecíamos; a Geologia revelou a formação da Terra; a Química, a lei das afinidades; a Fisiologia, as funções do organismo, etc.; Copérnico4, Galileu, Newton5, Laplace6, Lavoisier7 foram reveladores.

4 Nicolau Copérnico (1473-1543): matemático e astrônomo polaco; propôs a teoria heliocentrista, na qual afirma que o Sol era o centro do Sistema Solar, derrubando a tesa Geocentrista, de que a Terra o centro do Universo – N. D.

5 Isaac Newton (1643-1727): importante cientista inglês que revolucionou as leis da Física – N. D.

6 Pierre Simon Laplace (‗1749-1827): matemático, astrônomo e físico francês, desenvolvedor da Mecânica Física – N. D.

7 Antoine Lavoisier (1743-1794): cientista francês criador da Química moderna – N. D.

3. A característica essencial de qualquer revelação tem que ser a verdade. Revelar um segredo é tornar conhecido um fato; se é falso, já não é um fato e, por consequência, não existe revelação. Toda revelação desmentida por fatos deixa de ser revelação, se for atribuída a Deus. Como Deus não mente e nem se enganar, ela não pode vim d’Ele: deve ser considerada produto de uma concepção humana. 14 – Allan Kardec

4. Qual o papel do professor diante dos seus discípulos, senão o de um revelador? O professor lhes ensina o que eles não sabem, o que não teriam tempo, nem possibilidade de descobrir por si mesmos, porque a Ciência é obra coletiva dos séculos e de uma multidão de homens que trazem, cada qual, o seu punhado de observações aproveitáveis para aqueles que vêm depois. Portanto, na realidade, o ensino é a revelação de certas verdades científicas ou morais, físicas ou transcendentais, feitas por homens que as conhecem a outros que as ignoram e que, se assim não fosse, as teriam ignorado sempre.

5. Mas, o professor só ensina o que aprendeu: é um revelador de segunda ordem; o homem inteligente ensina o que descobriu por si mesmo: é o revelador primitivo; traz a luz que pouco a pouco se torna popular. Que seria da Humanidade sem a revelação dos gênios que aparecem de tempos a tempos?

Mas, quem são esses homens geniais? E por que são geniais? Donde vieram? Que é feito deles? Notemos que na sua maioria, ao nascer, demonstram capacidades transcendentes e alguns conhecimentos naturais, que com pouco trabalho desenvolvem. Pertencem realmente à Humanidade – pois nascem, vivem e morrem como nós –, mas onde adquiriram esses conhecimentos que não puderam aprender durante a vida? Dirão, como dizem os materialistas, que o acaso lhes deu a matéria cerebral em maior quantidade e de melhor qualidade? Neste caso, não teriam mais mérito que um legume maior e mais saboroso do que outro.

Dirão, como certos espiritualistas, que Deus lhes deu uma alma mais favorecida que a do comum dos homens? Suposição igualmente ilógica, pois que tachariam Deus de injusto. A única solução racional do problema está na preexistência da alma e na pluralidade das vidas. O sábio é um Espírito que tem vivido mais tempo; que, por conseguinte, adquiriu e progrediu mais do que aqueles que estão menos adiantados. Estando encarnando, traz o que sabe e, como sabe muito mais do que os outros e não precisa aprender, é chamado homem de gênio. Mas sua sabedoria é fruto de um trabalho anterior e não resultado de um privilégio. Logo, antes de renascer, ele era Espírito adiantado: reencarna para fazer que os outros aproveitem do que já sabe, ou para adquirir mais do que possui.

Os homens progridem incontestavelmente por si mesmos e pelos esforços da sua inteligência; mas, entregues às próprias forças, só muito lentamente progrediriam, se não fossem auxiliados por outros mais adiantados, como o estudante aprende pelos professores. Todos os povos tiveram homens inteligentes, surgidos em diversas épocas, para lhes dar impulso e tirá-los da inércia.

6. Desde que admitimos a dedicação de Deus para com as suas criaturas, por que não haveremos de admitir que, por sua energia e superioridade de conhecimento, os Espíritos são capazes de fazerem que a Humanidade avance, encarnem pela vontade de Deus, com o fim de ativarem o progresso em determinado sentido? Por que não admitir que eles recebam missões, como um embaixador as recebe do seu soberano? Tal o papel dos grandes gênios. O que eles vêm fazer senão ensinar aos homens verdades que estes ignoram e ainda ignorariam durante largos períodos, a fim de lhes dar um ponto de apoio mediante o qual possam elevar-se mais rapidamente? Esses sábios, que aparecem através dos séculos como estrelas brilhantes, deixando longo traço luminoso sobre a Humanidade, são missionários ou, se o quiserem, messias. O que de novo ensinam aos homens são revelações – seja na ordem física, seja na ordem filosófica. Se Deus ocasiona reveladores para as verdades científicas, com mais forte razão, pode permiti-los para as verdades morais, que constituem elementos essenciais do progresso. Tais são os filósofos cujas ideias atravessam os séculos.

7. No sentido especial da fé religiosa, a revelação se diz mais particularmente das coisas 15 – A GÊNESE

espirituais que o homem não pode descobrir por meio da inteligência, nem com o auxílio dos sentidos e cujo conhecimento Deus ou seus mensageiros lhe dão – seja por meio da palavra direta, seja pela inspiração. Neste caso, a revelação é sempre feita a homens predispostos, designados sob o nome de profetas ou messias, isto é, enviados ou missionários, incumbidos de transmiti-la aos homens. Considerada debaixo deste ponto de vista, a revelação implica a passividade absoluta e é aceita sem verificação, sem exame, nem discussão.

8. Todas as religiões tiveram seus reveladores e estes, embora estivessem longe de conhecer toda a verdade, tinham uma razão de ser providencial, porque eram apropriados ao tempo e ao meio em que viviam, ao caráter particular dos povos a quem falavam e aos quais eram relativamente superiores.

Apesar dos erros das suas doutrinas, não deixaram de agitar os espíritos e, por isso mesmo, de semear os germens do progresso, que mais tarde haviam de desenvolver-se, ou se desenvolverão à luz brilhante do Cristianismo.

Então, é injusto que se lance maldição sobre eles em nome da ortodoxia8, porque dia virá em que todas essas crenças, tão diversas nas regraas, mas que repousam realmente sobre um mesmo princípio fundamental – Deus e a imortalidade da alma –, se fundirão numa grande e vasta unidade, logo que a razão triunfe dos preconceitos.

8 Ortodoxia: interpretação doutrinária rigorosa – N. D.

Infelizmente as religiões têm sido sempre instrumentos de dominação; o papel de profeta tem tentado as ambições particulares e temos visto surgir uma multidão de falsos reveladores ou messias, que, valendo-se do prestígio deste nome, exploram a fé em proveito do seu orgulho, da sua ganância, ou da sua preguiça, achando mais cômodo viver à custa dos iludidos. A religião cristã não pôde evitar esses parasitas.

A tal propósito, chamamos particularmente a atenção para o capítulo XXI de O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO; “Haverá falsos Cristos e falsos profetas”.

9. Haverá revelações diretas de Deus aos homens? É uma questão que, de maneira absoluta, não ousaríamos resolver – nem afirmativamente, nem negativamente. O fato não é radicalmente impossível, porém, nada nos dá prova certa dele. O que não padece dúvida é que os Espíritos mais próximos de Deus pela perfeição se enchem do Seu pensamento e podem transmiti-lo. Quanto aos reveladores encarnados, segundo a ordem hierárquica a que pertencem e o grau a que chegaram de saber, esses podem tirar dos seus próprios conhecimentos as instruções que ministram, ou recebê-las de Espíritos mais elevados, mesmo dos mensageiros diretos de Deus, os quais, falando em nome da Divindade, têm sido às vezes tomados pelo próprio Deus.

As comunicações deste gênero nada têm de estranho para quem conhece os fenômenos espíritas e como se estabelecem as relações entre os encarnados e os desencarnados. As instruções podem ser transmitidas por diversos meios: pela simples inspiração, pela audição da palavra, pela visibilidade dos Espíritos instrutores, nas visões e aparições – quer em sonho, quer em estado de vigília – do que há muitos exemplos na Bíblia, no Evangelho e nos livros sagrados de todos os povos.

Portanto, é rigorosamente exato dizermos que quase todos os reveladores são médiuns inspirados, audientes ou videntes. Daí, entretanto, não se deve concluir que todos os médiuns sejam reveladores, nem, ainda menos, intermediários diretos da divindade ou dos seus mensageiros.

10. Só os Espíritos puros recebem a palavra de Deus com a missão de transmiti-la; mas, hoje sabemos que nem todos os Espíritos são perfeitos e que existem muitos que se 16 – Allan Kardec

apresentem sob falsas aparências, o que levou S. João a dizer: “Não acreditem em todos os Espíritos; vejam antes se os Espíritos são de Deus” (I João, 4:1).

Então, pode haver revelações sérias e verdadeiras como as há apócrifas9 e mentirosas. O caráter essencial da revelação divina é o da eterna verdade. Toda revelação contaminada de erros ou sujeita a modificação não pode vir de Deus. É assim que a lei do Decálogo10 tem todos os traços de origem divina, enquanto que as outras leis de Moisés – sendo fundamentalmente transitórias, muitas vezes em contradição com a lei do Sinai – são obra pessoal e política daquele legislador hebreu. Depois que os costumes do povo se abrandou, essas leis caíram em desuso automaticamente, ao passo que o Decálogo ficou sempre de pé, como farol da Humanidade. O Cristo fez dos Dez Mandamentos a base do seu edifício, abolindo as outras leis. Se estas fossem obra de Deus, seriam conservadas intactas. O Cristo e Moisés foram os dois grandes reveladores que mudaram a face ao mundo e nisso está a prova da sua missão divina. Uma obra puramente humana careceria de tal poder.

9 Apócrifo: não oficial, duvidoso, clandestino, falso – N. D.

10 Decálogo: os Dez Mandamentos – N. D.

11. Importante revelação se opera na época atual e mostra a possibilidade de nos comunicarmos com os seres do mundo espiritual. Sem dúvida, esse conhecimento não é novo, mas ficou até aos nossos dias, de certo modo, como letra morta – isto é, sem proveito para a Humanidade A ignorância das leis que regem essas relações o abafou sob a superstição; o homem era incapaz de tirar daí qualquer dedução saudável; estava reservado à nossa época desembaraçá-lo dos acessórios ridículos, compreender seu alcance e fazer surgir a luz destinada a clarear o caminho do futuro.

12. Dando-nos a conhecer o mundo invisível que nos cerca e no meio do qual vivíamos sem o suspeitarmos, o Espiritismo – assim como as leis que o regem, suas relações com o mundo visível, a natureza e o estado dos seres que o habitam e consequentemente o destino do homem depois da morte – é uma verdadeira revelação, na significação científica da palavra.

13. Por sua natureza, a revelação espírita tem dupla função: participa ao mesmo tempo da revelação divina e da revelação científica. Participa da primeira, porque o seu aparecimento foi providencial e não o resultado da iniciativa, nem de uma intenção premeditada do homem; porque os pontos fundamentais da doutrina vêm do ensino que deram os Espíritos encarregados por Deus de esclarecer os homens acerca de coisas que eles ignoravam, que não podiam aprender por si mesmos e que devem conhecer, já que hoje estão aptos a compreendê-las. Participa da segunda, por esse ensino não ser privilégio de indivíduo algum, mas ministrado a todos do mesmo modo; por não serem os que o transmitem e os que o recebem seres passivos, dispensados do trabalho da observação e da pesquisa, por não renunciarem ao raciocínio e ao livre-arbítrio; porque não é proibido a eles o exame – mas, ao contrário, recomendado; enfim, porque a doutrina não foi ditada completa, nem imposta à crença cega; porque é deduzida, pelo trabalho do homem, da observação dos fatos que os Espíritos lhe põem sob os olhos e das instruções que lhe dão, instruções que ele estuda, comenta, compara, a fim de ele próprio tirar as ilações e aplicações. Numa palavra, o que caracteriza a revelação espírita é o de sua origem ser de Deus e da iniciativa dos Espíritos, sendo a sua elaboração fruto do trabalho do homem.

14. Como meio de elaboração, o Espiritismo procede exatamente da mesma forma que 17 – A GÊNESE

as ciências positivas, aplicando o método experimental. Fatos novos se apresentam, que não podem ser explicados pelas leis conhecidas; ele os observa, compara, analisa e, remontando dos efeitos às causas, chega à lei que os rege; depois, deduz-lhes as consequências e busca as aplicações úteis. Não estabeleceu nenhuma teoria preconcebida; assim, não apresentou como hipóteses a existência e a intervenção dos Espíritos, nem o perispírito, nem a reencarnação, nem qualquer dos princípios da doutrina; concluiu pela existência dos Espíritos, quando essa existência ressaltou evidente da observação dos fatos, procedendo de igual maneira quanto aos outros princípios. Não foram os fatos que vieram posteriormente confirmar a teoria: a teoria é que veio depois explicar e resumir os fatos. Portanto, é rigorosamente exato dizermos que o Espiritismo é uma ciência de observação e não produto da imaginação. As ciências só fizeram progressos importantes depois que seus estudos se basearam sobre o método experimental; até então, acreditou-se que esse método também só era aplicável à matéria, ao passo que o é também às coisas metafísicas.11

11 Metafísico: que está além da física, transcendental – N. D.

15. Citemos um exemplo: passa-se no mundo dos Espíritos um fato muito estranho, de que seguramente ninguém havia suspeitado que é o de haver Espíritos que se não consideram mortos. Pois bem, os Espíritos superiores – que conhecem perfeitamente esse fato – não vieram dizer antecipadamente: “Há Espíritos que julgam viver ainda a vida terrestre, que conservam seus gostos, costumes e instintos”. Provocaram a manifestação de Espíritos desta categoria para que nós os observássemos. Tendo visto Espíritos incertos quanto ao seu estado, ou afirmando ainda serem deste mundo, julgando-se aplicados às suas ocupações ordinárias, deduzimos a regra. A variedade de fatos semelhantes demonstrou que o caso não era excepcional, que constituía uma das fases da vida espírita; pode-se então estudar todas as variedades e as causas de tão estranha ilusão, reconhecer que tal situação é sobretudo própria de Espíritos pouco adiantados moralmente e peculiar a certos gêneros de morte; que é temporária, podendo, todavia, durar semanas, meses e anos. Foi assim que a teoria nasceu da observação. O mesmo se deu com relação a todos os outros princípios da doutrina.

16. Assim como a Ciência clássica tem por objeto o estudo das leis do princípio material, o objeto especial do Espiritismo é o conhecimento das leis do princípio espiritual. Ora, como este último princípio é uma das forças da Natureza, a reagir incessantemente sobre o princípio material e reciprocamente, entendemos que o conhecimento de um não pode estar completo sem o conhecimento do outro. O Espiritismo e a Ciência se completam reciprocamente; a Ciência, sem o Espiritismo, se acha na impossibilidade de explicar certos fenômenos só pelas leis da matéria; sem a Ciência, faltariam ao Espiritismo apoio e comprovação. O estudo das leis da matéria tinha que vir antes que o estudo da espiritualidade, porque a matéria é que primeiro é captada pelos sentidos. Se o Espiritismo tivesse vindo antes das descobertas científicas teria abortado como tudo quanto surge antes do tempo.

17. Todas as ciências se encadeiam e sucedem numa ordem racional; nascem umas das outras, à proporção que acham ponto de apoio nas ideias e conhecimentos anteriores. A Astronomia – uma das primeiras ciências cultivadas – conservou os erros da infância, até ao momento em que a Física veio revelar a lei das forças dos agentes naturais; a Química – que não pode nada sem a Física – teve de acompanhá-la de perto, para depois marcharem ambas de acordo, amparando-se uma à outra. A Anatomia, a Fisiologia, a 18 – Allan Kardec

Zoologia, a Botânica, a Mineralogia, só se tornaram ciências sérias com o auxílio das luzes que lhes trouxeram a Física e a Química. À Geologia nascida ontem, sem a Astronomia, a Física, a Química e todas as outras, teriam faltado elementos de vitalidade; ela só podia vir depois daquelas.

18. A Ciência moderna abandonou os quatro elementos primitivos dos antigos12 e, de observação em observação, chegou à concepção de um só elemento gerador de todas as transformações da matéria; mas, a matéria por si só é imóvel; carecendo de vida, de pensamento, de sentimento, precisa estar unida ao princípio espiritual. O Espiritismo não descobriu e nem inventou este princípio, mas foi o primeiro a demonstrar a sua existência por provas incontestáveis; estudou, analisou e tornou evidente sua ação. Ao elemento material, ele juntou o elemento espiritual. Elemento material e elemento espiritual, esses os dois princípios, as duas forças vivas da Natureza. Pela união indivisível deles facilmente se explica uma multidão de fatos até então inexplicáveis13.

12 Os primeiros filósofos acreditavam que o Universo vinha de quatro elementos básicos: terra, ar, fogo e água – N. D.

13 A palavra elemento não é empregada aqui no sentido de corpo simples, elementar, de moléculas primitivas, mas no de parte constitutiva de um todo. Neste sentido, pode dizer-se que o elemento espiritual tem parte ativa na economia do Universo, como se diz que o elemento civil e o elemento militar figuram no cálculo de uma população; que o elemento religioso entra na educação; ou que na Argélia existem o elemento árabe e o elemento europeu.

14 Johannes Kepler (1571-1630): astrônomo, matemático e astrólogo – N. D.

Tendo como objetivo o estudo de um dos elementos constitutivos do Universo, O Espiritismo toca forçosamente na maior parte das ciências; portanto, só podia vir depois da elaboração delas; nasceu pela força mesma das coisas, pela impossibilidade de explicarmos tudo com o auxílio apenas das leis da matéria.

19. Acusam a Doutrina Espírita de parentesco com a magia e a feitiçaria; porém, esquecem que a Astronomia tem por irmã mais velha a Astrologia judiciária, ainda não muito distante de nós; que a Química é filha da Alquimia, com a qual nenhum homem sensato ousaria hoje ocupar-se. Ninguém nega, entretanto, que na Astrologia e na Alquimia estivesse o gérmen das verdades de que saíram as ciências atuais. Apesar das suas ridículas fórmulas, a Alquimia encaminhou a descoberta dos corpos simples e da lei das afinidades. A Astrologia se apoiava na posição e no movimento dos astros, que ela estudou, mas na ignorância das verdadeiras leis que regem o mecanismo do Universo, para o leigo, os astros eram seres misteriosos, aos quais a superstição atribuía uma influência moral e um sentido revelador. Quando Galileu, Newton e Kepler14 tornaram conhecidas essas leis, quando o telescópio rasgou o véu e mergulhou nas profundezas do espaço um olhar que algumas criaturas acharam indiscreto, os planetas apareceram como simples mundos semelhantes ao nosso e todo o castelo do maravilhoso desmoronou.

O mesmo se dá com o Espiritismo, relativamente à magia e à feitiçaria, que se apoiavam também na manifestação dos Espíritos, como a Astrologia no movimento dos astros; mas, ignorantes das leis que regem o mundo espiritual, misturavam, com essas relações, práticas e crenças ridículas, com as quais o moderno Espiritismo, fruto da experiência e da observação, acabou. Certamente, a distância que separa o Espiritismo da magia e da feitiçaria é maior do que a que existe entre a Astronomia e a Astrologia, a Química e a Alquimia. Confundi-las é provar que de nenhuma se sabe patavina.

20. O simples fato de o homem poder se comunicar com os seres do mundo espiritual traz consequências incalculáveis da mais alta gravidade; é todo um mundo novo que se 19 – A GÊNESE

revela a nós e que tem tanto mais importância quanto a ele terão de voltar todos os homens – sem exceção.

De maneira geral, o conhecimento de tal fato não pode deixar de acarretar profunda modificação nos costumes, caráter, hábitos, assim como nas crenças que exerceu tão grande influência sobre as relações sociais. É uma revolução completa a se operar nas ideias, revolução tanto maior, tanto mais poderosa, quanto não se limita a um povo, nem a uma classe social, visto que atinge simultaneamente, pelo coração, todas as categorias, todas as nacionalidades, todos os cultos.

Pois, há razão para que o Espiritismo seja considerado a terceira das grandes revelações. Vejamos em que essas revelações diferem e qual o laço que as liga entre si.

21. Como profeta, Moisés revelou aos homens a existência de um Deus único, Soberano Senhor e Orientador de todas as coisas; promulgou a lei do Sinai e lançou as bases da verdadeira fé. Como homem, foi o legislador do povo pelo qual essa fé primitiva, purificando-se, havia de espalhar-se por sobre a Terra.

22. O Cristo, tomando da antiga lei o que é eterno e divino e rejeitando o que era transitório (puramente disciplinar e de concepção humana) acrescentou a revelação da vida futura, de que Moisés não havia falado, assim como a das penas e recompensas que aguardam o homem, depois da morte (ver REVISTA ESPÍRITA, 1861, páginas 90 e 280).

23. A parte mais importante da revelação do Cristo – no sentido de fonte primária, de pedra angular de toda a sua doutrina – é o ponto de vista inteiramente novo sob que ele considera a Divindade. Esta já não é o Deus terrível, ciumento, vingativo, de Moisés; o Deus cruel e implacável, que rega a terra com o sangue humano, que ordena o massacre e o extermínio dos povos, sem fazer exceção às mulheres, às crianças e aos velhos, e que castiga aqueles que poupam as vítimas, já não é o Deus injusto, que pune um povo inteiro pela falta do seu chefe, que se vinga do culpado na pessoa do inocente, que fere os filhos pelas faltas dos pais; mas, um Deus clemente, soberanamente justo e bom, cheio de mansidão e misericórdia, que perdoa ao pecador arrependido e dá a cada um segundo as suas obras. Já não é o Deus de um único povo privilegiado, o Deus dos exércitos, presidindo aos combates para sustentar a sua própria gente contra o Deus dos outros povos; mas, o Pai comum do gênero humano, que estende a sua proteção por sobre todos os seus filhos e os chama todos a si; já não é o Deus que recompensa e pune só pelos bens da Terra, que faz consistir a glória e a felicidade na escravidão dos povos rivais e na multiplicidade da descendência, mas, sim, um Deus que diz aos homens: “A verdadeira pátria não é neste mundo, mas no reino celestial, lá onde os humildes de coração serão elevados e os orgulhosos serão humilhados”. Já não é o Deus que faz da vingança uma virtude e ordena que se retribua olho por olho, dente por dente; mas, o Deus de misericórdia, que diz: “Perdoem as ofensas, se querem ser perdoados; façam o bem em troca do mal; não façam o que não gostariam que lhes fizessem”. Já não é o Deus mesquinho e meticuloso, que impõe – sob as mais rigorosas penas – o modo como quer ser adorado, que se ofende pela inobservância de uma fórmula; mas, o Deus grande, que vê o pensamento e que se não honra com formalidades15. Enfim, já não é o Deus que quer ser temido, mas o Deus que quer ser amado.

15 Formalidades: ritual, reza, cerimônia, liturgia – N. D.

24. Sendo Deus o eixo de todas as crenças religiosas e o objetivo de todos os cultos, a qualidade de todas as religiões é conforme à ideia que elas dão a Deus. As religiões que fazem de Deus um ser vingativo e cruel julgam honrá-lo com atos de crueldade, com 20 – Allan Kardec

fogueiras e torturas; as que têm um Deus partidário e ciumento são intolerantes e mais ou menos meticulosas na forma, por crerem-no mais ou menos contaminado das fraquezas e insignificâncias humanas.

25. Toda a doutrina do Cristo se funda no caráter que ele atribui à Divindade. Com um Deus imparcial, soberanamente justo, bom e misericordioso, ele fez do amor de Deus e da caridade para com o próximo a condição indeclinável da salvação, dizendo: Amem a Deus sobre todas as coisas e o próximo como a si mesmos; nisto estão toda a lei e os profetas; não existe outra lei. Sobre esta crença, assentou o princípio da igualdade dos homens perante Deus e o da fraternidade universal. Mas, teria sido possível amar o Deus de Moisés? Não; só se podia temê-lo.

A revelação dos verdadeiros atributos da Divindade, de acordo com a da imortalidade da alma e da vida futura, modificava profundamente as relações mútuas dos homens, dava a eles novas obrigações, fazia-os encarar a vida presente sob outro aspecto e, por isso mesmo, tinha de reagir contra os costumes e as relações sociais. Incontestavelmente, por suas consequências, esse é o ponto principal da revelação do Cristo, cuja importância não foi compreendida suficientemente e, lamentavelmente, é também o ponto de que mais a Humanidade se tem afastado, que mais há desconhecido na interpretação dos seus ensinos.

26. Entretanto, o Cristo acrescenta: “Muitas das coisas que digo vocês ainda não compreendem e teria a dizer muitas outras que não compreenderiam; por isso é que lhes falo por parábolas; mais tarde, porém, enviarei a vocês o Consolador, o Espírito de Verdade, que restabelecerá todas as coisas e lhes explicará tudo” (João, 14,16; e Mateus, 17).

Se o Cristo não disse tudo quanto poderia dizer, é que julgou conveniente deixar certas verdades na sombra, até que os homens chegassem ao estado de compreendê-las. Como ele próprio confessou, seu ensino era incompleto, pois anunciava a vinda daquele que o completaria; logo, previu que suas palavras não seriam bem interpretadas, e que os homens se desviariam do seu ensino; em suma, que desfariam o que ele fez, uma vez que todas as coisas hão de ser restabelecidas: ora, só se restabelece aquilo que foi desfeito.

27. Por que ele chama Consolador ao novo messias? Este nome – significativo e sem equívoco – contém toda uma revelação. Assim, ele previa que os homens teriam necessidade de consolações, o que implica a insuficiência daquelas que eles achariam na crença que iam fundar. Talvez nunca o Cristo fosse tão claro, tão explícito, como nestas últimas palavras, às quais poucas pessoas deram atenção bastante, provavelmente porque evitaram esclarecê-las e aprofundar-lhes o sentido profético.

28. Se o Cristo não pôde desenvolver o seu ensino de maneira completa, é que faltavam aos homens conhecimentos que eles só podiam adquirir com o tempo e sem os quais não o compreenderiam; há muitas coisas que teriam parecido absurdas no estado dos conhecimentos de então. Devemos entender “completar o seu ensino” no sentido de explicar e desenvolver, não no de ajuntar-lhe verdades novas, porque tudo nele se encontra em estado de semente, faltando-lhe só a chave para apreendermos o sentido das palavras.

29. Mas, quem toma a liberdade de interpretar as Escrituras Sagradas? Quem tem esse 21 – A GÊNESE

direito? Quem possui as necessárias luzes, senão os teólogos? 16 Quem ousa fazer isso? Primeiro, a Ciência – que não pede permissão a ninguém para dar a conhecer as leis da Natureza e que salta sobre os erros e os preconceitos. Quem tem esse direito? Neste século de emancipação intelectual e de liberdade de consciência, o direito de exame pertence a todos e as Escrituras não são mais a arca santa17 na qual ninguém se atreveria a tocar com a ponta do dedo, sem correr o risco de ser fulminado. Quanto às luzes especiais e necessárias, sem contestar as dos teólogos, por mais esclarecidos que fossem os da Idade Média, e, em particular, os Pais da Igreja, eles, contudo, não eram bastante para não condenarem como heresia o movimento da Terra18 e a crença nos antípodas19. Mesmo sem ir tão longe, os teólogos dos nossos dias não lançaram maldição à teoria dos períodos de formação da Terra?

16 Teólogo: aquele que estuda ou se ocupa acerca de Deus – N. D.

17 Aqui, arca santa faz se refere à sagrada Arca da Aliança descrita no Antigo Testamento da Bíblia – N. D.

18 O tribunal da Inquisição condenavam defensores da ideia de a Terra girar em torno do Sol, pois a Igreja defendia que este planeta era o centro do Universo e que tudo girava em torno dele – N. D.

19 Antípoda: seres que habitam em lugares opostos. Refere-se ao fato de os antigos doutores da Igreja não terem descoberto a existência de povos de outras regiões, como os do continente americano – N. D.

20 Confúcio (551 a.C – 479 a.C.): filósofo e teórico político chinês – N. D.

21 Buda, ou Siddartha Gautama (563 a.C. – 483 a.C.): líder espiritual, fundador do Budismo, de grande influência no Oriente – N. D.

Os homens só puderam explicar as Escrituras com o auxílio do que sabiam, das noções falsas ou incompletas que tinham sobre as leis da Natureza, reveladas mais tarde pela Ciência. Eis por que os próprios teólogos – mesmo com muito boa vontade – se enganaram sobre o sentido de certas palavras e fatos do Evangelho. Querendo a todo custo encontrar nele a confirmação de uma ideia preconcebida, giraram sempre no mesmo círculo, sem abandonar o seu ponto de vista, de modo que só viam o que queriam ver. Por mais instruídos que fossem, eles não podiam compreender causas dependentes de leis que desconheciam.

Mas quem julgará das interpretações diversas e muitas vezes contraditórias, fora do campo da teologia? – O futuro, a lógica e o bom-senso! Os homens, cada vez mais esclarecidos – à medida que novos fatos e novas leis se forem revelando – saberão separar os conceitos ilusórios da realidade. Ora, as ciências tornam conhecidas algumas leis; o Espiritismo revela outras; todas são indispensáveis à inteligência dos Textos Sagrados de todas as religiões, desde Confúcio20 e Buda21 até o Cristianismo. Quanto à teologia, essa não poderá alegar com sensatez contradições da Ciência, visto como também ela nem sempre está de acordo consigo mesma.

30. O Espiritismo, partindo das próprias palavras do Cristo – como este partiu das de Moisés – é resultado direto da sua doutrina (de Jesus). À ideia vaga da vida futura, acrescenta a revelação da existência do mundo invisível que nos rodeia e povoa o espaço, e com isso dá à crença uma exatidão, um corpo, uma consistência, uma realidade à ideia. Define os laços que unem a alma ao corpo e levanta o véu que ocultava aos homens os mistérios do nascimento e da morte. Pelo Espiritismo, o homem sabe donde vem, para onde vai, por que está na Terra, por que sofre temporariamente e vê por toda parte a justiça de Deus. Sabe que a alma progride sempre, através de uma série de existências sucessivas, até atingir o grau de perfeição que a aproxima de Deus. Sabe que todas as almas, tendo um mesmo ponto de origem, são criadas iguais, com idêntica aptidão para progredir, em virtude do seu livre-arbítrio; que todas são da mesma essência e que não há entre elas diferença, senão quanto ao progresso realizado; que todas têm o mesmo destino e alcançarão a mesma meta, mais ou menos rapidamente, pelo trabalho e boa vontade. Sabe que não há criaturas deserdadas, nem mais 22 – Allan Kardec

favorecidas umas do que outras; que Deus não criou nenhuma que seja privilegiada e dispensada do trabalho imposto às outras para progredirem; que não há seres perpetuamente votados ao mal e ao sofrimento; que aqueles a quem chamamos de demônios são Espíritos ainda atrasados e imperfeitos, que praticam o mal no espaço, como praticavam na Terra, mas que se adiantarão e aperfeiçoarão; que os anjos ou Espíritos puros não são seres especiais na criação, mas Espíritos que chegaram à meta, depois de terem percorrido a estrada do progresso; que, por essa forma, não há criações múltiplas, nem diferentes categorias entre os seres inteligentes, mas que toda a criação deriva da grande lei de unidade que rege o Universo e que todos os seres trilham para um fim comum que é a perfeição, sem que uns sejam favorecidos à custa de outros, visto serem todos filhos das suas próprias obras.

31. Pelas relações que hoje pode estabelecer com aqueles que deixaram a Terra, o homem possui não só a prova material da existência e da individualidade da alma, como também compreende a solidariedade que liga os vivos aos mortos deste mundo e os deste mundo aos dos outros planetas. Conhece a situação deles no mundo dos Espíritos, acompanha-os em suas migrações, aprecia-lhes as alegrias e as penas; sabe a razão por que são felizes ou infelizes e a sorte que lhes está reservada, conforme o bem ou o mal que fizerem. Essas relações iniciam o homem na vida futura, que ele pode observar em todas as suas fases, em todas as suas peripécias; o futuro já não é uma vaga esperança: é um fato positivo, uma certeza matemática. Desde então, a morte nada mais tem de amedrontador, por ser sua libertação e a porta da verdadeira vida.

32. Pelo estudo da situação dos Espíritos, o homem sabe que a felicidade e a desventura na vida espiritual correspondem ao grau de perfeição e de imperfeição; que cada qual sofre as consequências diretas e naturais de suas faltas, ou, por outra, que é punido no que pecou; que essas consequências duram tanto quanto a causa que as produziu; que, por conseguinte, o culpado sofreria eternamente, se persistisse no mal, mas que o sofrimento acaba com o arrependimento e a reparação; ora, como depende de cada um o seu aperfeiçoamento, todos podem, em virtude do livre-arbítrio, prolongar ou abreviar seus sofrimentos, como o doente sofre, pelos seus excessos, enquanto não lhes põe fim.

33. Se a razão rejeita – como incompatível com a bondade de Deus – a ideia das penas imperdoáveis, perpétuas e absolutas, muitas vezes infligidas por uma única falta; a dos suplícios do inferno, que não podem ser minimizadas nem sequer pelo arrependimento mais ardente e mais sincero, a mesma razão se inclina diante dessa justiça distributiva e imparcial, que leva tudo em conta, que nunca fecha a porta ao arrependimento e estende constantemente a mão ao náufrago, em vez de empurrá-lo para o abismo.

34. A pluralidade das existências – cujo princípio o Cristo estabeleceu no Evangelho, sem todavia defini-lo como a muitos outros – é uma das mais importantes leis reveladas pelo Espiritismo, pois que lhe demonstra a realidade e a necessidade para o progresso. Com esta lei, o homem explica todas as aparentes anormalidades da vida humana; as diferenças de posição social; as mortes prematuras que, sem a reencarnação, tornariam inúteis à alma as existências breves; a desigualdade de aptidões intelectuais e morais, pela durabilidade do Espírito que mais ou menos aprendeu e progrediu, e traz, nascendo, o que adquiriu em suas existências anteriores (ver item 5).

35. Com a doutrina da criação da alma no instante do nascimento, caímos no sistema das criações privilegiadas; os homens são estranhos uns aos outros, nada os liga, os laços de família são puramente carnais; não são de nenhum modo solidários com um passado em 23 – A GÊNESE

que não existiam; com a doutrina do nada após a morte, todas as relações cessam com a vida; os seres humanos não são solidários no futuro. Pela reencarnação, são solidários no passado e no futuro e, como as suas relações se perpetuam, tanto no mundo espiritual como no corporal, a fraternidade tem por base as próprias leis da Natureza; o bem tem um objetivo e o mal tem consequências inevitáveis.

36. Com a reencarnação, desaparecem os preconceitos de raças e de classes, pois o mesmo Espírito pode tornar a nascer rico ou pobre, capitalista ou proletário, chefe ou subordinado, livre ou escravo, homem ou mulher. De todos os argumentos invocados contra a injustiça da servidão e da escravidão, contra a sujeição da mulher à lei do mais forte, nenhum há que prime, em lógica, ao fato material da reencarnação. Então, se a reencarnação funda numa lei da Natureza o princípio da fraternidade universal, também funda na mesma lei o da igualdade dos direitos sociais e, por conseguinte, o da liberdade.

37. Tirem do homem o Espírito livre e independente, sobrevivente à matéria, e fariam dele uma simples máquina organizada, sem finalidade, nem responsabilidade; sem outro freio além da lei civil e própria a ser explorada como um animal inteligente. Nada esperando depois da morte, nada impede a que aumente os prazeres do presente; se sofre, só tem a perspectiva do desespero e o nada como refúgio. Com a certeza do futuro e de encontrar de novo aqueles a quem amou e com o temor de rever aqueles a quem ofendeu, todas as suas ideias mudam. O Espiritismo, ainda que só fizesse forrar o homem da dúvida relativamente à vida futura, teria feito mais pelo seu aperfeiçoamento moral do que todas as leis disciplinares, que o detêm algumas vezes, mas que não o transformam.

38. Sem a preexistência da alma, a doutrina do pecado original não seria somente inconciliável com a justiça de Deus – que tornaria todos os homens responsáveis pela falta de um só –, seria também um contrassenso, e , segundo essa doutrina, tanto menos justificável quanto a alma não existia na época a que se pretende fazer que a sua responsabilidade tenha origem. Com a preexistência, o homem, ao renascer, traz a semente das suas imperfeições, dos defeitos de que ainda não se corrigiu e que se traduzem pelos instintos naturais e pelas tendências para esse ou aquele vício. É esse o seu verdadeiro pecado original, cujas consequências naturalmente sofre, mas com a diferença fatal de que sofre a pena das suas próprias faltas, e não das de outro alguém; e com a outra diferença, ao mesmo tempo consoladora, animadora e soberanamente equilibrada, de que cada existência lhe oferece os meios de se redimir pela reparação e de progredir – seja libertando-se de alguma imperfeição, seja adquirindo novos conhecimentos e, assim, até que, suficientemente purificado, não necessite mais da vida corporal e possa viver exclusivamente a vida espiritual, eterna e bem-aventurada.

Pela mesma razão, aquele que progrediu moralmente traz, ao renascer, qualidades naturais, como o que progrediu intelectualmente traz ideias inatas; identificado com o bem, pratica-o sem esforço, sem cálculo e, por assim dizer, sem pensar. Aquele que é obrigado a combater as suas más tendências vive ainda em luta; o primeiro já venceu, o segundo procura vencer. Portanto, existe a virtude original, como existe o saber original, e o pecado ou, antes, o vício original.

39. O Espiritismo experimental estudou as propriedades dos fluidos espirituais e a ação deles sobre a matéria. Demonstrou a existência do perispírito, suspeitado desde a 24 – Allan Kardec

antiguidade e designado por São Paulo sob o nome de corpo espiritual 22, isto é, corpo fluídico da alma, depois da destruição do corpo físico. Hoje sabemos que essa vestimenta é inseparável da alma, forma um dos elementos constitutivos do ser humano, é o veículo da transmissão do pensamento e, durante a vida do corpo, serve de laço entre o Espírito e a matéria. O perispírito representa importantíssimo papel no organismo e numa multidão de efeitos, que se ligam à fisiologia, assim como à psicologia.

22 Coforme lemos na 1ª carta aos Coríntios, 15:44: ―Semeia-se corpo natural, ressuscitará corpo espiritual. Se há corpo natural, há também corpo espiritual‖ – N. D.

23 Muitos pais lastimam a morte prematura dos filhos, para cuja educação fizeram grandes sacrifícios, e dizem consigo mesmos que tudo foi em pura perda de tempo. Porém, à luz do Espiritismo, não lamentariam esses sacrifícios e estariam prontos a fazê-los, mesmo tendo a certeza de que veriam seus filhos morrer, porque sabem que se estes não aproveitam tal educação na vida presente, essa servirá primeiro que tudo para o seu adiantamento espiritual; e mais, que serão aquisições novas para outra existência e que, quando voltarem a este mundo, terão um patrimônio intelectual que os tornará mais aptos a adquirirem novos conhecimentos, iguais a essas crianças que trazem, ao nascer, ideias inatas — que sabem, por assim dizer, sem precisarem aprender.

40. O estudo das propriedades do perispírito, dos fluidos espirituais e dos atributos fisiológicos da alma abre novos horizontes à Ciência e dá a chave de uma multidão de fenômenos incompreendidos até então, por falta de conhecimento da lei que os rege – fenômenos negados pelo materialismo, por se prenderem à espiritualidade, e qualificados como milagres ou feitiçarias por outras crenças. Entre muitos, tais são os fenômenos da vista dupla, da visão à distância, do sonambulismo natural e artificial, dos efeitos psíquicos da catalepsia e da letargia, da presciência, dos pressentimentos, das aparições, das transfigurações, da transmissão do pensamento, da fascinação, das curas instantâneas, das obsessões e possessões, etc. Demonstrando que esses fenômenos fazem parte de leis naturais, como os fenômenos elétricos, e em que condições normais podem se reproduzir, o Espiritismo desfaz o império do maravilhoso e do sobrenatural e, conseguintemente, a fonte da maior parte das superstições. Faz com que acreditemos na possibilidade de certas coisas consideradas por alguns como impossíveis, também impede que se creia em muitas outras, das quais ele demonstra a impossibilidade e a irracionalidade.

41. O Espiritismo, longe de negar ou destruir o Evangelho, ao contrário, vem confirmar, explicar e desenvolver, pelas novas leis da Natureza – que revela, tudo quanto o Cristo disse e fez; elucida os pontos obscuros do ensino cristão, de tal sorte que aqueles para quem certas partes do Evangelho eram incompreensíveis, ou pareciam inadmissíveis, as compreendem e admitem sem dificuldade com o auxílio desta doutrina; enxergam melhor o seu alcance e podem distinguir entre a realidade e a simbologia; o Cristo lhes parece maior: já não é simplesmente um filósofo, é um Messias divino.

42. Além do mais, se considerarmos o poder moralizador do Espiritismo – pela finalidade que assina a todas as ações da vida, por tornar quase visíveis as consequências do bem e do mal, pela força moral, a coragem e as consolações que dá nas aflições, mediante inalterável confiança no futuro, pela ideia de ter cada um perto de si os seres a quem amou, a certeza de os rever, a possibilidade de confabular com eles; enfim, pela certeza de que tudo quanto se fez, quanto se adquiriu em inteligência, sabedoria, moralidade, até à última hora da vida, não fica perdido, que tudo aproveita ao adiantamento do Espírito, reconhecemos que o Espiritismo realiza todas as promessas do Cristo a respeito do Consolador anunciado. Ora, como é o Espírito de Verdade que preside ao grande movimento da regeneração, a promessa da sua vinda se acha por essa forma cumprida, porque, de fato, é ele o verdadeiro Consolador.23 25 – A GÊNESE

Se os pais não têm a satisfação imediata de ver os filhos aproveitarem da educação que lhes deram, certamente terão mais tarde – seja como Espíritos, seja como homens. Talvez eles sejam de novo os pais desses mesmos filhos, que se apontam como afortunadamente dotados pela natureza e que devem as suas aptidões a uma educação precedente; assim também, se os filhos se desviam para o mal, pela negligência dos pais, estes podem vir a sofrer mais tarde desgostos e pesares que àqueles suscitarão em nova existência (―O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO‖, cap. V, nº 21; ―Mortes prematuras‖).

24 O nosso papel pessoal – no grande movimento de ideias que se prepara pelo Espiritismo e que começa a operar-se – é o de um observador atento, que estuda os fatos para descobrir suas causas e tirar deles as consequências. Confrontamos todos os que nos têm sido possível reunir, comparamos e comentamos as instruções dadas pelos Espíritos em todos os pontos do globo e depois coordenamos metodicamente o conjunto; em suma, estudamos e demos ao público o fruto das nossas indagações, sem atribuirmos aos nossos trabalhos valor maior do que o de uma obra filosófica deduzida da observação e da experiência, sem nunca nos considerarmos chefe da doutrina, nem procurarmos impor as nossas ideias a quem quer que seja. Publicando essas ideias, usamos de um direito comum e aqueles que as aceitaram o fizeram livremente. Se essas ideias acharam numerosas simpatias, é porque tiveram a vantagem de corresponder às aspirações de avultado número de criaturas, mas não colhemos disso vaidade alguma, dado que a sua origem não nos pertence. O nosso maior mérito é a perseverança e a dedicação à causa que abraçamos. Em tudo isso, fizemos o que outro qualquer poderia ter feito como nós, razão pela qual nunca tivemos a pretensão de nos julgarmos profeta ou messias, nem, ainda menos, de nos apresentarmos como tal.

43. Se adicionarmos a estes resultados a rapidez espantosa da propagação do Espiritismo – apesar de tudo quanto fazem por abatê-lo –, ninguém poderá negar que a sua vinda seja providencial, visto como ele triunfa de todas as forças e de toda a má vontade dos homens. A facilidade com que é aceito por grande número de pessoas, sem constrangimento, apenas pelo poder da ideia, prova que ele corresponde a uma necessidade, igual a de o homem crer em alguma coisa para encher o vazio aberto pela descrença e que, portanto, veio no momento preciso.

44. Os aflitos estão em grande número; por isso, não é de admirar que tanta gente acolha uma doutrina que consola, de preferência às que desesperam, porque o Espiritismo se dirige mais aos deserdados, do que aos felizes do mundo. O doente vê chegar o médico com maior satisfação do que aquele que está bem de saúde; ora, os aflitos são os doentes e o Consolador é o médico.

Vocês todos que combatem o Espiritismo, se querem que o abandonemos para segui-los, mostre-nos mais e melhor do que a Doutrina Espírita; curem com maior segurança as feridas da alma. Tragam mais consolações, mais satisfações ao coração, esperanças mais legítimas, maiores certezas; façam do futuro um quadro mais racional, mais sedutor; porém, não julguem vencê-lo com a perspectiva do nada, com a alternativa das chamas do inferno, ou com a inútil contemplação perpétua.

45. A primeira revelação teve a sua personificação em Moisés, a segunda no Cristo, a terceira não tem em nenhum indivíduo. As duas primeiras foram individuais, a terceira coletiva; aí está um caráter essencial de grande importância. Ela é coletiva no sentido de não ser feita ou dada como privilégio a nenhuma pessoa; em consequência disso, ninguém pode inculcar-se como seu profeta exclusivo; foi espalhada simultaneamente, por sobre a Terra, a milhões de pessoas, de todas as idades e condições, desde a mais baixa até a mais alta da escala, conforme esta profecia registrada pelo autor dos Atos dos Apóstolos: “Nos últimos tempos, disse o Senhor, derramarei o meu espírito sobre toda a carne; os seus filhos e filhas profetizarão, os jovens terão visões, e os velhos terão sonhos” (Atos dos Apóstolos, 2:17-18). Ela não proveio de nenhum culto especial, a fim de um dia servir a todos, de ponto de ligação24.

46. As duas primeiras revelações, sendo fruto do ensino pessoal, ficaram naturalmente localizadas, isto é, apareceram num só ponto, em torno do qual a ideia se propagou pouco a pouco; mas, foram precisos muitos séculos para que atingissem as extremidades 26 – Allan Kardec

do mundo, sem mesmo o invadirem inteiramente A terceira tem isto de particular: não estando personificada em um só indivíduo, surgiu simultaneamente em milhares de pontos diferentes, que se tornaram centros ou focos de irradiação. Multiplicando-se esses centros, seus raios se reúnem pouco a pouco, como os círculos formados por uma multidão de pedras lançadas na água, de tal sorte que, em dado tempo, acabarão por cobrir toda a superfície do globo.

Essa é uma das causas da rápida propagação da doutrina. Se ela tivesse surgido num só ponto, se fosse obra exclusiva de um homem, teria formado seitas25 em torno dela; e talvez decorresse meio século sem que ela atingisse os limites do país onde começara, ao passo que, após dez anos, já estende raízes de um polo a outro.

25 Seita: doutrina religiosa ou teoria filosófica separada da crença comum – N. D.

26 Assim compreendendo, a Federação Espírita Brasileira passou a publicar obras espíritas na língua internacional: o Esperanto – Nota da Editora.

47. Esta circunstância – inédita na história das doutrinas – lhe dá força excepcional e irresistível poder de ação; de fato, se a perseguirem num ponto, em determinado país, será materialmente impossível que a persigam em toda parte e em todos os países. Em contraposição a um lugar onde lhe embaracem a marcha, haverá mil outros em que florescerá. Ainda mais: se a ferirem num indivíduo, não poderão feri-la nos Espíritos – que são a fonte donde ela brota. Ora, como os Espíritos estão em toda parte e existirão sempre, se, por um acaso impossível, conseguissem sufocá-la em todo o globo, ela reapareceria pouco tempo depois, porque repousa sobre um fato que está na Natureza e não se podem suprimir as leis da Natureza. Eis aí o de que devem se convencer aqueles que sonham com o aniquilamento do Espiritismo (REVISTA ESPÍRITA, fevereiro de 1865: “Da Perpetuidade do Espiritismo”).

48. Entretanto, com a propagação dos centros espíritas, estes poderiam ainda permanecer por muito tempo isolados uns dos outros, confinados como estão alguns em países mais distantes. Faltava entre eles uma ligação, que os pusesse em comunhão de ideias com seus irmãos em crença, informando-os do que se fazia noutros lugares. Esse traço de união – que na antiguidade teria faltado ao Espiritismo – hoje existe nas publicações que vão a toda parte, condensando, sob uma forma única, objetiva e metódica, o ensino dado universalmente sob formas múltiplas e nas diversas línguas26.

49. As duas primeiras revelações só podiam resultar de um ensino direto; como os homens não estivessem ainda bastante adiantados a fim de contribuírem para a sua elaboração, elas tinham que ser impostas pela fé, sob a autoridade da palavra do Mestre. Contudo, notamos entre as duas diferença bem sensível, devida ao progresso dos costumes e das ideias, se bem que feitas ao mesmo povo e no mesmo meio, mas com dezoito séculos de intervalo. A doutrina de Moisés é absoluta, autoritária; não admite discussão e se impõe ao povo pela força. A de Jesus é essencialmente conselheira; é livremente aceita e só se impõe pelo convencimento; foi controvertida desde o tempo do seu fundador, que não se recusava de discutir com os seus adversários.

50. A terceira revelação, vinda numa época de emancipação e maturidade intelectual, em que a inteligência (já desenvolvida) não se submete a representar papel passivo; em que o homem nada aceita às cegas, mas quer ver aonde o conduzem, quer saber o porquê e o efeito de cada coisa – tinha ela que ser ao mesmo tempo o produto de um ensino e o fruto do trabalho, da pesquisa e do livre-exame. Os Espíritos só ensinam justamente o que é necessário para guiá-lo no caminho da verdade, mas recusam 27 – A GÊNESE

de revelar o que o homem pode descobrir por si mesmo, deixando-lhe o cuidado de discutir, verificar e submeter tudo ao exercício da razão, muitas vezes, deixando mesmo que adquira experiência à sua custa. Fornecem ao homem o princípio, os materiais; cabe à humanidade aproveitá-los e pô-los em obra (nº 15).

51. Como os elementos da revelação espírita foram ensinados simultaneamente em muitos pontos, aos homens de todas as condições sociais e de diversos graus de instrução, é claro que as observações não podiam ser feitas em toda parte com o mesmo resultado; que as consequências a tirar, a dedução das leis que regem esta ordem de fenômenos, em suma, a conclusão sobre que haviam de se firmar, as ideias não podiam sair senão do conjunto e da correlação dos fatos. Ora, cada centro isolado, limitado dentro de um círculo restrito, muitas vezes só vendo uma ordem particular de fatos – não raro contraditórios na aparência, geralmente vindo de uma mesma categoria de Espíritos e, ao demais, embaraçados por influências locais e pelo espírito de partido –, se achava na impossibilidade material de abranger o conjunto e, por isso mesmo, incapaz de conjugar as observações isoladas a um princípio comum. Cada qual apreciando os fatos sob o ponto de vista dos seus conhecimentos e crenças anteriores, ou da opinião especial dos Espíritos que se manifestassem, bem cedo teriam surgido tantas teorias e doutrinas quantos fossem os centros, todos incompletos por falta de elementos de comparação e exame. Numa palavra, cada qual teria se imobilizado na sua revelação parcial, julgando possuir toda a verdade, ignorando que em cem outros lugares obtinha-se mais ou melhor conceito.

52. Além disso, convém notar que em nenhuma parte o ensino espírita foi dado integralmente; ele diz respeito a tão grande número de observações, a assuntos tão diferentes, exigindo conhecimentos e aptidões mediúnicas especiais, que seria impossível acharem-se reunidas num mesmo ponto todas as condições necessárias. Tendo o ensino que ser coletivo e não individual, os Espíritos dividiram o trabalho, disseminando os assuntos de estudo e observação como, em algumas fábricas, a confecção de cada parte de um mesmo objeto é repartida por diversos operários.

A revelação fez-se assim parcialmente em diversos lugares e por uma multidão de intermediários e é dessa maneira que prossegue ainda, pois que nem tudo foi revelado. Cada centro encontra nos outros centros o complemento do que obtém, e foi o conjunto, a coordenação de todos os ensinos parciais que constituíram a Doutrina Espírita.

Portanto, era necessário agrupar os fatos espalhados, para apreendermos sua correlação, reunir os documentos diversos, as instruções dadas pelos Espíritos sobre todos os pontos e sobre todos os assuntos, para compará-las, analisar, estudar as suas semelhanças e diferenças. Como as comunicações vinham de Espíritos de todas as ordens, mais ou menos esclarecidos, era preciso apreciar o grau de confiança que a razão permitia conceder a eles, distinguir as ideias sistemáticas individuais ou isoladas das que tinham a aprovação do ensino geral dos Espíritos, as utopias das ideias práticas, afastar as que eram notoriamente desmentidas pelos dados da ciência positiva e da lógica, utilizar igualmente os erros, as informações fornecidas pelos Espíritos, mesmo os da mais baixa categoria, para conhecimento do estado do mundo invisível e formar com isso um todo homogêneo.

Numa palavra, era preciso um centro de elaboração, independente de qualquer ideia preconcebida, de todo prejuízo de seita, resolvido a aceitar a verdade tornada evidente, embora contrária às opiniões pessoais. Este centro se formou por si 28 – Allan Kardec

mesmo, pela força das coisas e sem propósito premeditado.27

27 O LIVRO DOS ESPÍRITOS, a primeira obra que levou o Espiritismo a ser considerado de um ponto de vista filosófico, pela dedução das consequências morais dos fatos; que considerou todas as partes da doutrina, tocando nas questões mais importantes que ela suscita, foi desde o seu aparecimento, o ponto para onde convergiram espontaneamente os trabalhos individuais. É notório que da publicação desse livro data a era do Espiritismo filosófico, até então conservado no domínio das experiências curiosas. Se esse livro conquistou as simpatias da maioria é que exprimia os sentimentos dela, correspondia às suas aspirações e encerrava também a confirmação e a explicação racional do que cada um obtinha em particular. Se estivesse em desacordo com o ensino geral dos Espíritos, teria caído no descrédito e no esquecimento. Ora, qual foi aquele ponto de convergência? Decerto não foi o homem, que nada vale por si mesmo, que morre e desaparece; mas, a ideia que não fenece quando emana de uma fonte superior ao homem.

Essa espontânea concentração de forças dispersas deu lugar a uma amplíssima correspondência, monumento único no mundo, quadro vivo da verdadeira história do Espiritismo moderno, onde se refletem ao mesmo tempo os trabalhos parciais, os sentimentos múltiplos que a doutrina fez nascer, os resultados morais, as dedicações, os desfalecimentos; arquivos preciosos para a posteridade, que poderá julgar os homens e as coisas através de documentos autênticos. Em presença desses testemunhos inexpugnáveis, a que se reduzirão, com o tempo, todas as falsas alegações da inveja e do ciúme?...

28 Significativo testemunho, tão notável quanto tocante, dessa comunhão de conceitos que se estabeleceu entre os espíritas, pela unidade de suas crenças, são os pedidos de preces que nos chegam dos mais distantes países, desde o Peru até as extremidades da Ásia, feitos por pessoas de religiões e nacionalidades diversas e as quais nunca vimos. Não é isso um prelúdio da grande unificação que se prepara? Não é a prova de que por toda parte o Espiritismo lança raízes fortes?

É digno de nota que de todos os grupos que se têm formado com a intenção premeditada de abrir cisão, proclamando princípios divergentes, do mesmo modo que de todos quantos, apoiando-se em razões de amor-próprio ou outras quaisquer, para não parecer que se submetem à lei comum, se consideraram fortes bastante para caminhar sozinhos, possuidores de luzes suficientes para prescindirem de conselhos, nenhum chegou a construir uma ideia que fosse preponderante e viável. Todos se acabaram ou vegetaram na sombra. Nem de outro modo poderia ser, dado que, para se destacarem – em vez de se esforçarem por proporcionar maior soma de satisfações –, rejeitavam princípios da doutrina, precisamente o que de mais atraente há nela, o que de mais consolador ela contém e de mais racional. Se houvessem compreendido a força dos elementos morais que lhe constituíram a unidade, não teriam se embalado com ilusões ilusórias. Ao contrário, tomando como se fosse o Universo o pequeno círculo que constituíam, não viram nos adeptos mais do que uma camarilha facilmente derrubável por outra camarilha. Era equivocar-se de modo estranho, no tocante aos caracteres essenciais da doutrina e semelhante erro só decepções podia acarretar. Em lugar de romperem a unidade, quebraram o único laço que lhes podia dar força e vida (ver REVISTA ESPÍRITA, abril de 1866: ―O Espiritismo sem os Espíritos: o Espiritismo independente‖).

29 Esse é o objeto das nossas publicações, que se podem considerar o resultado de um trabalho de apuração. Nelas, todas as opiniões são discutidas, mas as questões somente são apresentadas em forma de

53. De todas essas coisas, originou-se dupla corrente de ideias: umas, dirigindo-se das extremidades para o centro; as outras encaminhando-se do centro para a circunferência. Desse modo, a doutrina caminhou rapidamente para a unidade, apesar da diversidade das fontes de onde brotou; as teorias divergentes ruíram pouco a pouco, devido ao isolamento em que ficaram, diante da influência da opinião da maioria, na qual não encontraram repercussão simpática. Desde então, uma comunhão de conceitos se estabeleceu entre os diversos centros parciais. Falando a mesma linguagem espiritual, eles se entendem e estimam, de um extremo a outro do mundo.

Assim, os espíritos se sentiram mais fortes, lutaram com mais coragem, caminharam com passo mais firme, desde que não mais se viram isolados, desde que perceberam um ponto de apoio, um laço a prendê-los à grande família. Os fenômenos que presenciavam não mais lhes pareceram estranhas, anormais, nem contraditórios – desde que puderam uni-los a leis gerais e descobrir um fim grandioso e humanitário em todo o conjunto.28

Mas, como saberemos se um princípio é ensinado por toda parte, ou se apenas exprime uma opinião pessoal? Não estando os grupos independentes em condições de saber o que se diz noutros lugares, se fazia necessário que um centro reunisse todas as instruções, para proceder a uma espécie de apuração das vozes e transmitir a todos a opinião da maioria.29 29 – A GÊNESE

princípios depois de haverem recebido a consagração de todas as comprovações, as quais, só elas, lhes podem imprimir força de lei e permitir afirmações. Eis por que não pregamos levianamente nenhuma teoria e é nisso exatamente que, decorrendo do ensino geral, a doutrina não representa produto de uma teoria preconcebida. É também donde tira a sua força e o que lhe garante o futuro.

30 Ver em O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO, ―Introdução‖, item II, e REVISTA ESPÍRITA, de abril de 1864: ―Autoridade da Doutrina Espírita; controle universal do ensino dos Espíritos‖.

54. Nenhuma ciência existe que haja saído prontinha do cérebro de um homem. Todas – sem exceção de nenhuma – são fruto de observações sucessivas, apoiadas em observações precedentes, como em um ponto conhecido, para chegar ao desconhecido. Foi assim que os Espíritos procederam, com relação ao Espiritismo. Daí o fato de o ensino que ministram ser gradativo. Eles não enfrentam as questões, senão à medida que os princípios sobre que hajam de apoiar-se estejam suficientemente elaborados e amadurecida bastante a opinião para assimilá-los. É mesmo notável que de todas as vezes que os centros particulares têm querido tratar de questões prematuras, não obtiveram mais do que respostas contraditórias, nada conclusivas. Quando, ao contrário, chega o momento oportuno, o ensino se generaliza e se unifica na quase universalidade dos centros.

Todavia, há uma importante diferença entre a marcha do Espiritismo e a das ciências; a de que estas só atingiram o ponto que alcançaram após longos intervalos, ao passo que alguns anos bastaram ao Espiritismo, quando não a alcançar o ponto máximo, pelo menos a recolher uma soma de observações bem grande para formar uma doutrina. Decorre esse fato de ser inumerável a multidão de Espíritos que, por vontade de Deus, se manifestaram simultaneamente, trazendo cada um a cota de seus conhecimentos. Resultou daí que todas as partes da doutrina, em vez de serem elaboradas sucessivamente durante longos anos, foram produzidas quase ao mesmo tempo, em alguns anos apenas, e que bastou reuni-las para que estruturassem um todo.

Deus quis que fosse assim, primeiro, para que o edifício mais rapidamente chegasse ao ápice; em seguida, para que por meio da comparação, pudéssemos conseguir uma verificação, a bem dizer imediata e permanente, da universalidade do ensino, nenhuma de suas partes tendo valor, nem autoridade, a não ser pela sua conexão com o conjunto, devendo todos se harmonizar, colocado cada um no devido lugar e vindo cada um na hora oportuna.

Não confiando a um único Espírito o encargo de promulgar a doutrina, Deus quis também que, assim o mais pequenino, como o maior, tanto entre os Espíritos, quanto entre os homens, trouxesse sua pedra para o edifício, a fim de estabelecer entre eles um laço de solidariedade cooperativa, que faltou a todas as doutrinas decorrentes de um tronco único.

Por outro lado, como todo Espírito e como todo homem dispõem apenas de limitada soma de conhecimentos, eles não estavam aptos, individualmente, a tratar com verdadeiro conhecimento de causa das inúmeras questões que o Espiritismo envolve. Essa é ainda uma razão por que, em cumprimento dos desígnios do Criador, a doutrina não podia ser obra nem de um só Espírito, nem de um só médium. Tinha que surgir da coletividade dos trabalhos, comprovados uns pelos outros.30

55. Uma última característica da revelação espírita, a ressaltar das condições mesmas em que ela se produz, é que, apoiando-se em fatos, tem que ser – e não pode deixar de ser – essencialmente progressiva, como todas as ciências de observação. Pela sua substância, alia-se à Ciência que, sendo a exposição das leis da Natureza, com relação a certa ordem de fatos, não pode ser contrária às leis de Deus, autor daquelas leis. As descobertas que a Ciência realiza, longe de rebaixarem a Divindade, glorificam a Deus; unicamente destroem o que os homens edificaram sobre as falsas 30 – Allan Kardec

concepções que formaram d’Ele.

Pois, o Espiritismo só estabelece como princípio absoluto aquilo que se acha evidentemente demonstrado, ou o que ressalta logicamente da observação. Entendendo com todos os ramos da economia social – aos quais dá o apoio das suas próprias descobertas –, assimilará sempre todas as doutrinas progressivas, de qualquer ordem que sejam, desde que tenham assumido o estado de verdades práticas e abandonado o domínio da utopia, sem o que ele se suicidaria. Deixando de ser o que é, mentiria à sua origem e ao seu fim providencial. Caminhando ao lado do progresso, o Espiritismo jamais será ultrapassado, porque, se novas descobertas lhe demonstrassem estar em erro acerca de um ponto qualquer, ele se modificaria nesse ponto. Se uma verdade nova se revelar, ele a aceitará.31

31 Diante de declarações tão nítidas e tão categóricas, quais as que se contêm neste capítulo, caem por terra todas as alegações de tendências ao absolutismo e à autocracia dos princípios, bem como todas as falsas assimilações que algumas pessoas prevenidas ou mal informadas emprestam à doutrina. Aliás, estas declarações não são novas; temos repetido isso muitíssimas vezes nos nossos escritos, para que nenhuma dúvida persista a tal respeito. Ao demais, elas assinalam o verdadeiro papel que nos cabe, único que ambicionamos: o de mero trabalhador.

56. Qual a utilidade da doutrina moral dos Espíritos, uma vez que não é diferente da do Cristo? O homem carece de uma revelação? Não pode achar em si próprio tudo o que é necessário para se conduzir?

Do ponto de vista moral, é fora de dúvida que Deus concedeu ao homem um guia, dando-lhe a consciência, que lhe diz: “Não faça a ninguém o que não gostaria que te fizessem”. A moral natural está positivamente inscrita no coração dos homens; porém, todos sabem lê-la nesse livro? Nunca lhe desprezaram os sábios preceitos? Que fizeram da moral do Cristo? Como a praticam mesmo aqueles que a ensinam? Reprovarão que um pai repita a seus filhos dez vezes ou cem vezes as mesmas instruções, desde que eles não as sigam? Por que Deus haveria de fazer menos do que um pai de família? Por que não enviaria, de tempos a tempos, mensageiros especiais aos homens, para lhes lembrar os deveres e reconduzi-los ao bom caminho, quando deste se afastam; para abrir os olhos da inteligência aos que os trazem fechados, assim como os homens mais adiantados enviam missionários aos selvagens e aos bárbaros?

A moral que os Espíritos ensinam é a do Cristo, pela razão de que não há outra melhor. Mas, então, de que serve o ensino deles, se apenas repisam o que já sabemos? Outro tanto se poderia dizer da moral do Cristo, que já Sócrates e Platão ensinaram quinhentos anos antes e em termos quase idênticos. O mesmo se poderia dizer também das de todos os moralistas, que nada mais fazem do que repetir a mesma coisa em todos os tons e sob todas as formas. Pois bem! Os Espíritos vêm simplesmente aumentar o número dos moralistas, com a diferença de que, manifestando-se por toda parte, tanto se fazem ouvir na choupana, como no palácio, assim pelos ignorantes, como pelos instruídos.

O que o ensino dos Espíritos acrescenta à moral do Cristo é o conhecimento dos princípios que regem as relações entre os mortos e os vivos, princípios que completam as noções vagas que se tinham da alma, de seu passado e de seu futuro, dando por sanção à doutrina cristã as próprias leis da Natureza. Com o auxílio das novas luzes que o Espiritismo e os Espíritos espalham, o homem se reconhece solidário com todos os seres e compreende essa solidariedade; a caridade e a fraternidade se tornam uma necessidade social; ele faz por convicção o que fazia unicamente por dever, e o faz melhor.

Somente quando praticarem a moral do Cristo, os homens poderão dizer que não mais precisam de moralistas encarnados ou desencarnados. Mas então, Deus 31 – A GÊNESE

também já não lhes enviará tais moralistas.

57. Uma das questões mais importantes, entre as propostas no começo deste capítulo, é a seguinte: Que autoridade tem a revelação espírita, uma vez que vem de seres de luzes limitadas e não infalíveis?

A objeção seria ponderosa, se essa revelação consistisse apenas no ensino dos Espíritos, se deles exclusivamente a devêssemos receber e houvéssemos de aceitá-la de olhos fechados. Entretanto, perde todo valor, desde que o homem concorra para a revelação com o seu raciocínio e o seu critério; desde que os Espíritos se limitam a pô-lo no caminho das deduções que ele pode tirar da observação dos fatos. Ora, as manifestações, nas suas inumeráveis modalidades, são fatos que o homem estuda para lhes deduzir a lei, auxiliado nesse trabalho por Espíritos de todas as categorias, que, de tal modo, são mais colaboradores seus do que reveladores, no sentido usual do termo. Ele lhes submete os dizeres ao exercício da lógica e do bom-senso: desta maneira se beneficia dos conhecimentos especiais de que os Espíritos dispõem pela posição em que se acham, sem abdicar o uso da própria razão.

Sendo os Espíritos unicamente as almas dos homens, comunicando-nos com eles não nos colocamos fora da Humanidade, circunstância capital a considerarmos. Os homens geniais – que foram fachos da Humanidade – vieram do mundo dos Espíritos e para lá voltaram, ao deixarem a Terra. Dado que os Espíritos podem se comunicar com os homens, esses mesmos gênios podem lhes dar instruções sob a forma espiritual, como fizeram sob a forma corpórea. Depois de terem morrido, podem nos instruir tal qual faziam quando vivos; apenas, são invisíveis, em vez de serem visíveis; essa a única diferença. Não devem ser menores do que eram a experiência e o saber que possuem e, se a palavra deles, como homens, tinha autoridade, não na pode ter menos somente por estarem no mundo dos Espíritos.

58. Mas, nem só os Espíritos superiores se manifestam; fazem isso igualmente os de todas as categorias e preciso era que assim acontecesse, para nos iniciarmos no que respeita ao verdadeiro caráter do mundo espiritual, apresentando-se este por todas as suas faces. Daí resulta as relações entre o mundo visível e o mundo invisível serem mais íntimas e a conexidade entre os dois ser mais evidente. Vemos assim mais claramente donde procedemos e para onde iremos. Esse o objeto essencial das manifestações. Todos os Espíritos nos ensinam alguma coisa – qualquer que seja o grau de elevação em que se encontrem; porém, visto que eles são mais ou menos esclarecidos, cabe a nós discernir o que há de bom ou de mau no que nos digam e tirar o proveito possível do ensino que nos trazem. Ora, seja quem for, todos podem nos ensinar ou revelar coisas que ignoramos e que sem eles nunca saberíamos.

59. Sem contestação, os grandes Espíritos encarnados são individualidades poderosas, mas de ação restrita e de lenta propagação. Viesse um só dentre eles (fosse Elias ou Moisés, Sócrates ou Platão) revelar aos homens nos tempos modernos as condições do mundo espiritual, quem provaria a veracidade das suas afirmativas, nesta época de ceticismo? 32 Não o tomariam por sonhador ou utopista? Mesmo que fosse verdade absoluta o que dissesse, séculos se escoariam antes que as massas humanas aceitassem suas ideias. Deus, em sua sabedoria, não quis que assim acontecesse; quis que o ensino fosse dado pelos próprios Espíritos, não por encarnados, a fim de que desencarnados convencessem os encarnados da sua existência e quis que isso ocorresse por toda a

32 Ceticismo: descrença, falta de fé, dúvida – N. D. 32 – Allan Kardec

Terra simultaneamente – quer para que o ensino se propagasse com maior rapidez, quer para que, coincidindo em toda parte, constituísse uma prova da verdade, tendo assim cada um o meio de convencer-se a si próprio.

60. Os Espíritos não se manifestam para isentar o homem do estudo e das pesquisas, nem para lhe transmitirem nenhuma ciência inteiramente pronta. Com relação ao que o homem pode achar por si mesmo, eles o deixam entregue às suas próprias forças. Isso hoje os espíritas sabem perfeitamente. Há muito tempo a experiência tem demonstrado ser errado atribuirmos aos Espíritos todo o saber e toda a sabedoria e supormos que baste a quem quer que seja dirigir-se ao primeiro Espírito que se apresente para conhecer todas as coisas. Saídos da Humanidade, eles constituem uma de suas faces. Assim como na Terra, no plano invisível também os há superiores e vulgares; muitos, pois, que, científica e filosoficamente, sabem menos do que certos homens; eles dizem o que sabem – nem mais, nem menos. Do mesmo modo que os homens, os Espíritos mais adiantados podem instruir-nos sobre maior porção de coisas, dar-nos opiniões mais cuidadosas do que os atrasados. Pedir conselhos aos Espíritos não é entrar em entendimento com potências sobrenaturais; é tratar com seus iguais, com aqueles mesmos a quem ele se dirigiria neste mundo; a seus parentes, seus amigos, ou a indivíduos mais esclarecidos do que ele. Disto é que importa que todos se convençam e é o que ignoram os que, não tendo estudado o Espiritismo, fazem ideia completamente falsa da natureza do mundo dos Espíritos e das relações com o além-túmulo.

61. Então, qual a utilidade dessas manifestações, ou se o preferirem, dessa revelação, uma vez que os Espíritos não sabem mais do que nós, ou não nos dizem tudo o que sabem?

Primeiramente, como já o declaramos, eles se reservam de nos dar o que podemos adquirir pelo trabalho; em segundo lugar, há coisas cuja revelação não lhes é permitida, porque o grau do nosso adiantamento não comporta. Afora isto, as condições da nova existência em que se acham lhes dilatam o círculo das percepções: eles veem o que não viam na Terra; libertos dos entraves da matéria, isentos dos cuidados da vida corpórea, apreciam as coisas de um ponto de vista mais elevado e, portanto, são mais; a esperteza de que gozam abrange mais vasto horizonte; compreendem seus erros, retificam suas ideias e se desembaraçam dos prejuízos humanos.

É nisto que consiste a superioridade dos Espíritos com relação à humanidade corpórea e daí vem a possibilidade de seus conselhos serem mais acertados e desinteressados do que os dos encarnados – segundo o grau de adiantamento que alcançaram. Além disso, o meio em que se encontram lhes permite iniciar-nos nas coisas que ignoramos em relação à vida futura e que não podemos aprender no meio em que estamos. Até ao presente, o homem apenas formulou hipóteses sobre o seu porvir; tal a razão por que suas crenças a esse respeito se dividem em tão numerosos e divergentes sistemas, desde o nadismo até as concepções fantásticas do inferno e do paraíso. Hoje, são as testemunhas oculares, os próprios atores da vida de além-túmulo que nos vêm dizer em que se tornaram e só eles o podiam fazer. Suas manifestações, por fim, serviram para nos dar a conhecer o mundo invisível que nos rodeia e do qual nem suspeitávamos e só esse conhecimento seria de capital importância, dado mesmo que nada mais os Espíritos pudessem nos ensinar.

Se forem a um país que ainda não conheçam, recusarão as informações que o mais humilde campônio que encontrarem lhes dê? Deixarão de interrogá-lo sobre o estado dos caminhos, simplesmente por ser ele um camponês? Certamente não esperarão obter por intermédio deles, esclarecimentos de grande alcance, mas, de acordo com o que ele é na sua esfera, poderá lhes informar sobre alguns pontos, melhor 33 – A GÊNESE

do que um sábio que não conheça o país. Tirarão das suas indicações deduções que ele próprio não tiraria, sem que por isso deixe de ser um instrumento útil às suas observações, embora apenas servisse para lhes informar acerca dos costumes dos camponeses. Outro tanto se dá no que se refere às nossas relações com os Espíritos, entre os quais o menos qualificado pode servir para nos ensinar alguma coisa.

62. Uma comparação vulgar tornará ainda melhor compreensível a situação:

Parte para destino longínquo um navio carregado de emigrantes. Leva homens de todas as condições, parentes e amigos dos que ficam. Ficamos sabendo que esse navio naufragou e nenhum vestígio resta dele, nenhuma notícia chega sobre a sua sorte. Acredita-se que todos os passageiros pereceram e o luto penetra em todas as suas famílias. Entretanto, a equipagem inteira, sem faltar um único homem, foi ter a uma ilha desconhecida, abundante e fértil, onde todos passam a viver felizes, sob um céu clemente – e ninguém, porém, sabe disso. Ora, um belo dia, outro navio aporta a essa terra e lá encontra os náufragos sãos e salvos. A feliz novidade se espalha com a rapidez do relâmpago. Exclamam todos: “Os nossos amigos não estão perdidos!” E rendem graças a Deus. Não podem ver-se uns aos outros, mas correspondem-se; permutam demonstrações de afeto e, assim, a alegria substitui a tristeza.

Tal a imagem da vida terrena e da vida de além-túmulo, antes e depois da revelação moderna. A última, semelhante ao segundo navio, nos traz a boa-nova da sobrevivência dos que nos são queridos e a certeza de que a eles nos reuniremos um dia. Deixa de existir a dúvida sobre a sorte deles e a nossa. O desânimo se desfaz diante da esperança.

Mas, outros resultados fertilizam essa revelação. Estando a humanidade madura para penetrar o mistério do seu destino e contemplar a sangue-frio novas maravilhas, Deus permitiu que fosse erguido o véu que ocultava o mundo invisível ao mundo visível. As manifestações nada têm de extra-humanas; é a humanidade espiritual que vem conversar com a humanidade corporal e dizer-lhe:

“Nós existimos, logo, o nada não existe; eis o que somos e o que vocês serão; o futuro lhes pertence como a nós. Caminham nas trevas, viemos lhes clarear o caminho e traçar o roteiro; andam ao acaso, viemos lhes apontar a meta. A vida terrena era tudo para vocês, porque nada viam além dela; viemos lhes dizer, mostrando a vida espiritual: a vida terrestre não é nada. A sua visão se detinha no túmulo, nós lhes desvendamos, para lá deste, um esplêndido horizonte. Não sabiam por que sofrem na Terra; agora, no sofrimento, vejam a justiça de Deus. O bem não produzia nenhum fruto aparente para o futuro. De agora em diante, ele terá uma finalidade e constituirá uma necessidade; a fraternidade, que não passava de bela teoria, assenta agora numa lei da Natureza. Sob o domínio da crença de que tudo acaba com a vida, a imensidade é o vazio, o egoísmo reina soberano entre vocês e a sua palavra de ordem é: ‘Cada um por si”. Com a certeza do porvir, os espaços infinitos se povoam ao infinito, em parte alguma há o vazio e a solidão; a solidariedade liga todos os seres, aquém e além da tumba. É o reino da caridade, sob a divisa: “Um por todos e todos por um”. Enfim, ao término da vida, diziam eterno adeus aos que lhes são caros; agora, dirão: ‘Até breve!’”

Em resumo, estes são os resultados da revelação nova, que veio encher o vazio que a incredulidade cavara, levantar os ânimos abatidos pela dúvida ou pela perspectiva do nada e imprimir a todas as coisas uma razão de ser. Carecerá de importância esse resultado, apenas porque os Espíritos não vêm resolver os problemas da Ciência, dar sabedoria aos ignorantes e aos preguiçosos os meios de se enriquecerem sem trabalho? Entretanto, nem só à vida futura dizem respeito os frutos que o homem deve colher dela. Ele os saboreará na Terra, pela transformação que estas novas crenças hão de 34 – Allan Kardec

necessariamente operar no seu caráter, nos seus gostos, nas suas tendências e, por conseguinte, nos hábitos e nas relações sociais. Pondo fim ao reino do egoísmo, do orgulho e da incredulidade, elas preparam o do bem, que é o reino de Deus, anunciado pelo Cristo.33

33 A anteposição do artigo à palavra Cristo (do grego Cristos, ungido), empregada em sentido absoluto, é mais correta, atento que essa palavra não é o nome do Messias de Nazaré, mas uma qualidade tomada substantivamente. Diremos pois: Jesus era Cristo; era o Cristo; era o Cristo anunciado; a morte do Cristo e não de Cristo, ao passo que se diz: a morte de Jesus e não do Jesus. Em Jesus Cristo, as duas palavras reunidas formam um só nome próprio. É pela mesma razão que se diz: o Buda; Gautama conquistou a dignidade de Buda por suas virtudes e austeridades. Diz-se: a vida do Buda, do mesmo modo que: o exército do Faraó e não de Faraó; Henrique IV era rei; o título de rei; a morte do rei e não de rei. 35 – A GÊNESE

CAPÍTULO II

DEUS

EXISTÊNCIA DE DEUS

DA NATUREZA DIVINA

A PROVIDÊNCIA

A VISÃO DE DEUS

 

EXISTÊNCIA DE DEUS

1. Sendo Deus a causa primária de todas as coisas, a origem de tudo o que existe e a base do edifício da criação, Ele também é o ponto que devemos considerar antes de tudo.

2. É um princípio elementar que julgamos uma causa pelos seus efeitos, mesmo quando essa causa se conserve oculta.

Se um pássaro, que percorre os ares, é atingido por mortífero grão de chumbo, deduz-se que um hábil atirador o alvejou, ainda que este atirador não seja visto. Pois, nem sempre se faz necessário ver uma coisa para sabermos que ela existe. Em tudo, chegamos ao conhecimento das causas observando seus efeitos.

3. Outra verdade também incontestável e que, de tão verdadeiro passou a ser ditado, é o de que todo efeito inteligente tem que decorrer de uma causa inteligente.

Se perguntassem qual o construtor de certo mecanismo engenhoso, que pensaríamos daquele que respondesse que essa máquina se fez a si mesma? Quando contemplamos uma obra-prima da arte ou da indústria, dizemos que um homem genial há de tê-la produzido, porque só uma alta inteligência poderia fazê-la. Entanto, reconhecemos que ela é obra de um homem, por se verificar que não está acima da capacidade humana; mas, a ninguém virá a ideia de dizer que saiu do cérebro de um idiota ou de um ignorante, nem ainda menos, que é trabalho de um animal, ou produto do acaso.

4. Em toda parte se reconhece a presença do homem pelas suas obras. A existência dos homens antediluvianos34 não seria provada unicamente por meio dos fósseis humanos: seria provada também – e com muita certeza – pela

34 Antediluviano: que existia antes de um dilúvio – N. D. 36 – Allan Kardec

presença de objetos trabalhados pelos homens, nos terrenos daquela época. Um fragmento de vaso, uma pedra talhada, uma arma ou um tijolo bastariam para confirmar sua existência. Reconheceríamos o grau de inteligência ou de adiantamento daqueles que executaram essas obras pela grosseria ou perfeição do trabalho. Portanto, se por acaso vocês se encontram numa região habitada exclusivamente por selvagens e descobrem uma estátua digna de Fídias35, não hesitariam em dizer que ela é obra de uma inteligência superior àqueles selvagens, que são incapazes de tê-la esculpida.

35 Fídias (490 a.C- 430 a.C.): genial escultor da Grécia Antiga – N. D.

5. Pois bem! Lançando o olhar em torno de si, sobre as obras da Natureza, notando a providência, a sabedoria, a harmonia que gerem essas obras, o observador reconhece não haver nenhuma que não ultrapasse os limites da mais poderosa inteligência humana. Ora, desde que o homem não pode produzir tais obras, é que elas são produto de uma inteligência superior à Humanidade – a menos que alguém sustente que há efeitos sem causa.

6. A isto alguns opõem o seguinte raciocínio: “As obras ditas da Natureza são produzidas por forças materiais que atuam mecanicamente, em virtude das leis de atração e repulsão; as moléculas dos corpos imóveis se agregam e desagregam sob o império dessas leis. As plantas nascem, brotam, crescem e se multiplicam sempre da mesma maneira, cada uma na sua espécie, por efeito daquelas mesmas leis; cada indivíduo se assemelha ao de quem ele proveio; o crescimento, a floração, a frutificação, a coloração se acham subordinados às causas materiais, tais como o calor, a eletricidade, a luz, a umidade, etc. O mesmo se dá com os animais. Os astros se formam pela atração molecular e se movem perpetuamente em suas órbitas por efeito da gravitação. Essa regularidade mecânica no emprego das forças naturais não prova a ação de qualquer inteligência livre. O homem movimenta o braço quando quer e como quer; porém, aquele que o movimentasse no mesmo sentido, desde o nascimento até a morte, seria um autômato. Ora, as forças orgânicas da Natureza são puramente automáticas”.

Tudo isso é verdade; mas, essas forças são efeitos que hão de ter uma causa e ninguém pretende que elas sejam a Divindade. Elas são materiais e mecânicas; não são de si mesmas inteligentes, também isto é verdade; mas, são postas em ação, distribuídas, apropriadas às necessidades de cada coisa por uma inteligência que não é a dos homens. A aplicação útil dessas forças é um efeito inteligente, que acusam uma causa inteligente. Um pêndulo se move com automática regularidade e é nessa regularidade que lhe está o mérito. A força que faz esse pêndulo se mover é toda material e nada tem de inteligente. Mas, que seria esse pêndulo, se uma inteligência não houvesse combinado, calculado, distribuído o emprego daquela força, para fazê-lo andar com precisão? Do fato de a inteligência não estar no mecanismo do pêndulo e do de que ninguém a vê, seria racional deduzir-se que ela não existe? Apreciamos essa inteligência pelos seus efeitos. 37 – A GÊNESE

A existência do relógio atesta a existência do relojoeiro; a engenhosidade do mecanismo lhe confirma a inteligência e o saber. Quando um relógio nos dá a indicação da hora no momento preciso, já nos terá vindo à mente dizer: “aí está um relógio bem inteligente?”

Do mesmo modo ocorre com o mecanismo do Universo: Deus não se mostra, mas se revela pelas suas obras.

7. Portanto, a existência de Deus é uma realidade comprovada não só pela revelação, como pela evidência material dos fatos. Os povos selvagens não tiveram nenhuma revelação; entretanto, creem instintivamente na existência de um poder sobre-humano. Eles veem coisas que estão acima das possibilidades do homem e deduzem que essas coisas vêm de um ente superior à Humanidade. Não demonstram raciocinar com mais lógica do que os que pretendem que tais coisas se fizeram a si mesmas?

DA NATUREZA DIVINA

8. Não é permitido ao homem sondar a natureza íntima de Deus. Para compreendê-lo, ainda nos falta o sentido próprio, que só se adquire por meio da completa purificação do Espírito. Mas, se o homem não pode penetrar na essência de Deus, pelo raciocínio, pode chegar a conhecer Seus atributos necessários – desde que aceite a sua existência como ponto –, porque vendo o que Ele absolutamente não pode ser, deduz daí o que Ele deve ser, sem deixar de ser Deus.

Seria impossível compreendermos a obra da criação sem o conhecimento das qualidades de Deus. Esse é o ponto de partida de todas as crenças religiosas e é por não terem se recorrido a isso que a maioria das religiões errou em seus dogmas – como ao farol capaz de orientá-las. Aquelas que não atribuíram a Deus a onipotência36 imaginaram muitos deuses; as que não lhe atribuíram soberana bondade fizeram dele um Deus ciumento, colérico, parcial e vingativo.

36 Onipotência: qualidade que atribuímos a Deus, como única potência, força soberana – N. D.

9. Deus é a inteligência suprema e soberana. A inteligência do homem é limitada, pois que ele não pode fazer e nem compreender tudo o que existe. A de Deus (que abrange o infinito) tem que ser infinita. Se a imaginássemos limitada num ponto qualquer, poderíamos conceber outro ser mais inteligente, capaz de compreender e fazer o que o primeiro não faria e assim por diante, até ao infinito.

10. Deus é eterno, isto é, não teve começo e não terá fim. Se tivesse tido princípio, teria saído do nada. Ora, o “nada” não sendo coisa alguma, não pode produzir nada. Ou então, se Ele tivesse sido criado por outro ser anterior, nesse 38 – Allan Kardec

caso, este outro ser é que seria Deus. Se supuséssemos um começo ou fim a Ele, poderíamos conceber uma entidade existente antes d’Ele e capaz de sobreviver a Ele, e assim por diante, ao infinito.

11. Deus é imutável. Se Ele estivesse sujeito a mudanças, as leis que regem o Universo não teriam nenhuma estabilidade.

12. Deus é imaterial, isto é, a Sua natureza difere de tudo o que chamamos matéria. De outro modo, não seria imutável, pois estaria sujeito às transformações da matéria.

Deus carece de forma apreciável pelos nossos sentidos, sem o que seria matéria. Dizemos: a mão de Deus, o olho de Deus, a boca de Deus, porque o homem – que não conhece nada mais além de si mesmo – toma a si próprio por modelo de comparação para tudo o que não compreende. São ridículas essas imagens em que Deus é representado pela figura de um ancião de longas barbas e envolto num manto37. Têm o inconveniente de rebaixar o Ente supremo até às mesquinhas proporções da Humanidade. Daí, estão a um passo de atribuírem a Ele as paixões humanas e a fazerem d’Ele um Deus colérico e ciumento.

37 Conforme se diz: Deus antropomórfico, ou seja, Deus com feições humanas – N. D.

13. Deus é onipotente. Se Ele não possuísse o poder supremo, sempre se poderia imaginar uma entidade mais poderosa e assim por diante, até chegar-se ao ser cuja potencialidade nenhum outro ultrapassasse. Esse outro então é que seria Deus.

14. Deus é soberanamente justo e bom. A providencial sabedoria das leis divinas se revela nas mais pequeninas coisas, como nas maiores, não permitindo essa sabedoria que se duvide da Sua justiça, nem da Sua bondade.

O fato de uma qualidade ser infinita, exclui a possibilidade de uma qualidade contrária, porque esta a diminuiria ou a anularia. Um ser infinitamente bom não poderia conter a mais insignificante parcela de maldade, nem o ser infinitamente mau poderia conter a mais insignificante parcela de bondade, do mesmo modo que um objeto não pode ser de um negro absoluto, com a mais ligeira mancha de branco, nem de um branco absoluto com a mais pequenina mancha preta.

Pois então, Deus não poderia ser ao mesmo tempo bom e mau, porque assim, não possuindo qualquer dessas duas qualidades no grau supremo, não seria Deus; todas as coisas estariam sujeitas ao seu capricho e não haveria nelas nenhuma estabilidade. Consequentemente, Ele não poderia deixar de ser ou infinitamente bom ou infinitamente mau. Ora, como Suas obras dão testemunho da Sua sabedoria, da Sua bondade e de Seu zelo, concluiremos que, não podendo ser igualmente bom e mau sem deixar de ser Deus, Ele necessariamente tem de ser infinitamente bom.

A soberana bondade implica a soberana justiça, porque, se Ele procedesse injustamente ou com parcialidade numa só circunstância que 39 – A GÊNESE

fosse, ou com relação a uma só de suas criaturas, já não seria soberanamente justo e, em consequência, já não seria soberanamente bom.

15. Deus é infinitamente perfeito. É impossível concebermos Deus sem o infinito das perfeições, sem o que não seria Deus, pois sempre se poderia conceber um ser que possuísse o que Lhe faltasse. Para que nenhum ser possa ultrapassá-lo, faz-se preciso que Ele seja infinito em tudo.

Como os atributos de Deus são infinitos, não são sujeitos nem de aumento, nem de diminuição, visto que do contrário não seriam infinitos e Deus não seria perfeito. Se tirássemos de qualquer dos atributos a mais mínima parcela, já não haveria Deus, pois que poderia existir um ser mais perfeito.

16. Deus é único. A unicidade38 de Deus é resultado do fato de as suas perfeições serem infinitas. Não poderia existir outro Deus, salvo sob a condição de ser igualmente infinito em todas as coisas, visto que, se houvesse entre eles a mais ligeira diferença, um seria inferior ao outro, subordinado ao poder desse outro e, então, não seria Deus. Se houvesse entre ambos igualdade absoluta, isso equivaleria a existir um mesmo pensamento, uma mesma vontade, um mesmo poder e por toda eternidade. Confundidos assim, quanto à identidade, não haveria, em realidade, mais que um único Deus. Se cada um tivesse atribuições especiais, um não faria o que o outro fizesse; mas, então, não existiria igualdade perfeita entre eles, pois que nenhum possuiria a autoridade soberana.

38 Unicidade: qualidade do que é único, ímpar, singular – N. D.

39 Politeísmo: crença em vários deuses – N. D.

17. Por não observarem o princípio de que as perfeições de Deus são infinitas foi que gerou o politeísmo39, culto adotado por todos os povos primitivos, que davam o atributo de divindade a todo poder que lhes parecia acima dos poderes inerentes à Humanidade. Mais tarde, a razão os levou a reunir essas diversas potências numa só. Depois, à medida que os homens foram compreendendo a essência dos atributos divinos, retiraram dos símbolos que haviam criado a crença que implicava a negação desses atributos.

18. Em resumo, Deus não pode ser Deus, senão sob a condição de que nenhum outro o ultrapasse, pois o ser que superasse a Ele no que quer que fosse, ainda que apenas na grossura de um cabelo, é que seria o verdadeiro Deus. Para que isso não se ocorra, é indispensável que Ele seja infinito em tudo.

Assim, comprovada pelas Suas obras a existência de Deus, chegamos a determinar os atributos que caracterizam a Divindade por simples dedução lógica.

19. Portanto, Deus é a inteligência suprema e soberana, é único, eterno, imutável, imaterial, onipotente, soberanamente justo e bom, infinito em todas as perfeições, e não pode ser diferente disso. 40 – Allan Kardec

Tal é a sustentação do edifício universal. Esse é o farol cujos raios se estendem por sobre o Universo inteiro, única luz capaz de guiar o homem na pesquisa da verdade. Orientando-se por essa luz, ele nunca se transviará. Por isso, se o homem tem errado tantas vezes, é unicamente por não ter seguido o roteiro que estava indicado para ele.

Tal também é o critério infalível de todas as doutrinas filosóficas e religiosas. Para apreciá-las, o homem dispõe de uma medida rigorosamente exata nos atributos de Deus e pode afirmar a si mesmo que toda teoria, todo princípio, todo dogma, toda crença, toda prática que estiver em contradição com um só que seja desses atributos, que se incline não tanto a anulá-lo, mas simplesmente a diminuí-lo, não pode estar com a verdade.

Em filosofia, em psicologia, em moral, em religião, só há de verdadeiro o que não se afaste – nem um til – das qualidades essenciais da Divindade. A religião perfeita será aquela que não contenha entre seus artigos de fé nenhum quesito que esteja em oposição àquelas qualidades; será aquela religião cujos dogmas todos suportem a prova dessa verificação sem sofrerem nada.

A PROVIDÊNCIA

20. A providência é o cuidado de Deus para com as Suas criaturas. Ele está em toda parte, tudo vê, a tudo preside, mesmo às coisas mais mínimas. É nisto que consiste a ação providencial.

“Sendo tão grande, tão poderoso e tão superior a tudo, como Deus pode cuidar de pormenores insignificantes, preocupar-se com os menores atos e os menores pensamentos de cada indivíduo?” Esta é uma interrogação que a si mesmo o incrédulo dirige, concluindo por dizer que, admitida a existência de Deus, só se pode admitir, quanto à sua ação, que ela se exerça sobre as leis gerais do Universo; que este funcione de toda a eternidade em virtude dessas leis, às quais toda criatura se acha submetida na esfera de suas atividades, sem que seja preciso intervenção incessante da Providência.

21. No estado de inferioridade em que os homens ainda se encontram, só muito dificilmente podem compreender que Deus seja infinito. Estando limitados e circunscritos, eles imaginam a Divindade também circunscrito e limitado. Imaginando que Ele seja assim, pintam o Pai iguais eles são, à imagem e semelhança deles. Os quadros em que O vemos com traços humanos não contribuem pouco para entreter esse erro no espírito das pessoas, que adoram n’Ele mais a forma que o pensamento. Para a maioria, Deus é um soberano poderoso, sentado num trono inacessível e perdido na imensidade dos céus. Sendo suas capacidades e percepções restritas, não compreendem que Deus possa e se digne de intervir diretamente nas pequeninas coisas.

22. Estando impotente para compreender a essência da Divindade, o homem só 41 – A GÊNESE

pode fazer dela uma vaga ideia, mediante comparações necessariamente muito imperfeitas, mas que ao menos servem para lhe mostrar a possibilidade daquilo que, à primeira vista, lhe parece impossível.

Suponhamos um fluido bastante sutil para penetrar todos os corpos. Não sendo inteligente, esse fluido atua mecanicamente por meio tão somente das forças materiais. Porém, se o imaginássemos dotado de inteligência, de faculdades perceptivas e sensitivas, ele já não atuará às cegas, mas com discernimento, com vontade e liberdade: verá, ouvirá e sentirá.

23. As propriedades do fluido do Perispírito nos dão uma ideia. Ele não é de si mesmo inteligente, porque é matéria, mas serve de veículo ao pensamento, às sensações e percepções do Espírito. Esse fluido não é o pensamento do Espírito; mas é o agente e o intermediário desse pensamento. Sendo quem o transmite, de certo modo fica impregnado do pensamento transmitido. Na impossibilidade em que nos achamos de isolá-lo, a nós nos parece que ele (o pensamento) se agrupa com o fluido, que se confunde com o pensamento, como acontece entre o som e o ar, de maneira que, a bem dizer, podemos materializá-lo. Assim como dizemos que o ar se torna sonoro, poderíamos, tomando o efeito pela causa, dizer que o fluido se torna inteligente.

24. Seja ou não assim no que se refere ao pensamento de Deus, isto é, quer o pensamento de Deus atue diretamente, quer por intermédio de um fluido, para facilitarmos a compreensão à nossa inteligência, vamos figurá-lo sob a forma concreta de um fluido inteligente que enche o universo infinito e penetra todas as partes da criação: a Natureza inteira mergulhada no fluido divino. Ora, em virtude do princípio de que as partes de um todo são da mesma natureza e têm as mesmas propriedades que ele, se assim nos podemos exprimir, cada átomo desse fluido, possuindo o pensamento – isto é, os atributos essenciais da Divindade e estando o mesmo fluido em toda parte –, tudo está submetido à Sua ação inteligente, à Sua previdência, à Sua solicitude. Por menor que nos pareça, não haverá nenhum ser que não esteja cheio d’Ele. Então nos achamos constantemente na presença da Divindade; não podemos ocultar de Seu olhar nenhuma das nossas ações; o nosso pensamento está em contato ininterrupto com o pensamento divino, havendo, pois, razão para dizermos que Deus vê os mais profundos segredos do nosso coração. Estamos n’Ele, como Ele está em nós, segundo a palavra do Cristo.

Para estender seu cuidado a todas as criaturas, Deus não precisa lançar o olhar do Alto da imensidade. Para que Ele possa nos ouvir, nossas preces não precisam percorrer o espaço, nem ser ditas com voz retumbante, porque Ele está continuamente ao nosso lado e os nossos pensamentos repercutem n’Ele. Os nossos pensamentos são como os sons de um sino, que fazem vibrar todas as moléculas do ar ambiente.

25. Longe de nós a ideia de materializar a Divindade. A imagem de um fluido inteligente universal evidentemente não passa de uma comparação apropriada 42 – Allan Kardec

a dar uma ideia mais exata de Deus, mais do que os quadros que O apresentam debaixo de uma figura humana. Ela tem o objetivo de fazer compreensível a possibilidade que Deus tem de estar em toda parte e de se ocupar com todas as coisas.

26. Temos constantemente diante de nossas vistas um exemplo que nos permite fazer ideia do modo como talvez se exerça a ação de Deus sobre as partes mais íntimas de todos os seres e, conseguintemente, do modo como chegam a Ele as mais sutis impressões de nossa alma. Esse exemplo nós tiramos de certa instrução que um Espírito deu a tal respeito.

27. “O homem é um pequeno mundo, que tem o Espírito como seu diretor e o corpo como o ser dirigido. Nesse nosso exemplo, o corpo representará uma criação e Deus seria o Espírito (Compreendam bem que aqui há uma simples questão de comparação e não de identidade). Os membros desse corpo, os diferentes órgãos que o compõem, os músculos, os nervos e as articulações são outras tantas individualidades materiais – se assim podemos comparar –, localizadas em pontos especiais do referido corpo. Se bem seja considerável o número de suas partes constitutivas, de natureza tão variada e diferente, não é permitido a ninguém supor que se possam produzir movimentos, ou uma impressão em qualquer lugar, sem que o Espírito tenha consciência do que ocorra. Há sensações diversas em muitos lugares simultaneamente? O Espírito sente todas elas, distingue, analisa, assina a cada uma a causa determinante e o ponto em que se produziu, tudo por meio do fluido do perispírito.

“Fenômeno semelhante ocorre entre Deus e a criação. Deus está em toda parte, na Natureza, como o Espírito está em toda parte, no corpo. Todos os elementos da criação se acham em relação constante com Ele, como todas as células do corpo humano se acham em contato imediato com o ser espiritual. Logo, não há razão para que eventos da mesma ordem não se produzam de maneira idêntica, num e noutro caso.

“Um membro se agita: o Espírito o sente; uma criatura pensa: Deus capta esse pensamento. Todos os membros estão em movimento, os diferentes órgãos estão a vibrar; o Espírito sente todas as manifestações, distingue e as localiza. As diferentes criações, as diferentes criaturas se agitam, pensam, agem diversamente: Deus sabe o que se passa e assina a cada um o que lhe diz respeito.

“Daí podemos também deduzir a solidariedade da matéria e da inteligência, a solidariedade entre si de todos os seres de um mundo, a de todos os mundos e, por fim, de todas as criações com o Criador”.

Quinemant – Sociedade de Paris, 1867.

28. Compreendemos o efeito e isso já é muito. Do efeito chegamos à causa e julgamos sua grandeza pela do efeito. Porém, desconhecemos a sua essência íntima, como a da causa de uma imensidade de fenômenos. Conhecemos os efeitos da eletricidade, do calor, da luz, da gravitação; calculamo-los e, entretanto, ignoramos a natureza íntima do princípio que os produz. Será então racional neguemos o princípio divino, por que não o compreendemos?

29. Para o princípio da soberana inteligência, nada impede que se admita um 43 – A GÊNESE

centro de ação, um foco principal a irradiar incessantemente, inundando o Universo com seus eflúvios, como o Sol faz com a sua luz. Mas onde está esse foco? – É o que ninguém pode dizer. Provavelmente, não se acha fixado em determinado ponto, como não está a sua ação, sendo também provável que percorra constantemente as regiões do espaço sem-fim. Se simples Espíritos têm o dom da ubiquidade40, em Deus essa aptidão há de ser sem limites. Estando Deus enchendo o Universo, poderíamos ainda admitir – a título de hipótese – que esse foco não precisa transportar-se, por se formar em todas as partes onde a soberana vontade julga conveniente que ele se produza, donde podemos dizer que está Ele em toda parte e em parte nenhuma.

40 Capacidade divina de estar presente em toda parte – N. D.

41 Kardec escreveu de acordo com os conhecimentos da época, antes de 1894, quando não havia microscópios capazes de precisarem os vírus transmissores de pestes – N. D.

30. Nossa razão deve se submeter diante desses problemas inexplicáveis. Deus existe: disso não poderemos duvidar. É infinitamente justo e bom: essa a Sua essência. A tudo se estende a Sua solicitude: nós O compreendemos. Portanto, Ele só pode querer o nosso bem, donde concluímos que devemos confiar n’Ele: isto é o essencial. Quanto ao mais, vamos esperar que nos tornemos dignos de compreendê-lo.

A VISÃO DE DEUS

31. Se Deus está em toda parte, por que não O vemos? Nós o veremos quando deixarmos a Terra? – Estas são perguntas que se formulam todos os dias.

À primeira é fácil responder. Como as percepções dos nossos órgãos visuais são limitadas, essas percepções tornam os sentidos incapazes de verem certas coisas – mesmo coisas materiais. Alguns fluidos são totalmente invisíveis aos instrumentos de análise; entretanto, não duvidamos da existência deles. Vemos os efeitos da peste, mas não vemos o fluido que a transporta41; vemos os corpos em movimento sob a influência da força de gravitação, mas não vemos essa força.

32. Os nossos órgãos materiais não podem perceber as coisas de essência espiritual. Unicamente com a visão espiritual é que podemos ver os Espíritos e as coisas do mundo imaterial. Por isso, somente a nossa alma pode ter a percepção de Deus. Acontecerá que ela veja a Divindade logo após a morte? – A esse respeito, só as comunicações de além-túmulo podem nos instruir. Por elas sabemos que a visão de Deus é privilégio das almas mais purificadas e que, das que deixam a vida terrestre, bem poucas se encontram no grau de desmaterialização necessária a tal efeito. Uma comparação simples tornará facilmente isso compreensível.

33. Uma pessoa que se ache no fundo de um vale, envolvido por densa bruma, 44 – Allan Kardec

não vê o Sol. Entretanto, pela luz difusa, percebe que está fazendo Sol. Se resolver subir a montanha, à medida que for ascendendo, verá o nevoeiro se tornando mais claro e a luz cada vez mais viva. Contudo, ainda não verá o Sol. Só depois que tenha se elevado acima da camada brumosa e chegado a um ponto onde o ar esteja perfeitamente límpido, essa pessoa contemplará o Astro em todo o seu esplendor.

O mesmo se dá com a alma. O corpo perispirítico, embora nos seja invisível e impalpável, com relação a ela, é verdadeira matéria, ainda grosseira demais para certas percepções. Porém, se espiritualiza na proporção que a alma se eleva em moralidade. As imperfeições da alma são iguais camadas nevoentas que lhe obscurecem a visão. Cada imperfeição de que ela se desfaz é uma mancha a menos; todavia, só depois de depurada completamente é que goza da plenitude das suas capacidades.

34. Sendo Deus a essência divina por excelência, unicamente os Espíritos que atingiram o mais alto grau de desmaterialização O podem perceber. Pelo fato de não verem a Divindade, não se segue que os Espíritos imperfeitos estejam mais distantes d’Ele do que estão os outros; esses Espíritos, como todos os seres da Natureza, se encontram mergulhados no fluido divino, do mesmo modo que nós estamos envolvidos pela luz. O que ocorre é que as imperfeições daqueles Espíritos são vapores que os impedem de ver o Criador. Quando o nevoeiro se dissipar, eles O verão resplandecer. Para isso, não é preciso que eles subam, nem procurá-lo nas profundezas do infinito. Desimpedida a visão espiritual das manchas que a obscureciam, eles verão Deus de todo lugar onde se encontrem, mesmo da Terra, porque Deus está em toda parte.

35. O Espírito só se purifica com o tempo e as diversas encarnações formam o depurador onde deixamos de cada vez algumas impurezas. Com o ato de abandonar o corpo físico, os Espíritos não se livram instantaneamente de suas imperfeições, razão por que, depois da morte, não enxergam Deus mais do que viam quando estavam vivos; mas, à medida que se qualificam, têm uma intuição mais clara da Divindade. Não o enxergam, mas o compreendem melhor e a luz é mais nítida. Então, quando alguns Espíritos dizem que Deus proíbe que eles respondam a uma determinada pergunta não é que Deus lhes apareça, ou dirija a palavra para lhes ordenar ou proibir isto ou aquilo, não; porém, eles o sentem; recebem as vibrações do Seu pensamento, como ocorre conosco com relação aos Espíritos que nos envolvem em seus fluidos, embora não possamos vê-los.

36. Por consequência disso, nenhum homem pode ver a Deus com os olhos da carne. Se essa graça fosse concedida a alguns, isso só seria no estado de êxtase, quando a alma se acha tão desprendida dos laços da matéria que torna possível o fato durante a encarnação. Aliás, tal privilégio exclusivamente pertenceria a almas eleitas, encarnadas em missão, e não em expiação. Mas, como os Espíritos da mais elevada categoria resplandecem de ofuscante brilho, pode ser que 45 – A GÊNESE

Espíritos menos elevados – encarnados ou desencarnados –, maravilhados com o esplendor de que aqueles se mostram cercados, suponham estar vendo o próprio Deus. É como quem vê um ministro e o confunde com o seu soberano.

37. Sob que aparência Deus se apresenta aos que se tornaram dignos de vê-lo? Será sob uma forma qualquer? Sob uma figura humana, ou como um foco de resplendente luz? – A linguagem humana é impotente para responder isso, porque não existe para nós nenhum ponto de comparação capaz de nos traçar uma ideia de tal coisa. Somos como cegos de nascença a quem inutilmente procurassem fazer que compreendessem o brilho do Sol. A nossa linguagem é limitada pelas nossas necessidades e pelo círculo das nossas ideias; a dos selvagens não poderia descrever as maravilhas da civilização; a dos povos mais civilizados é extremamente pobre para descrever os esplendores dos céus, a nossa inteligência muito restrita para compreendê-los e a nossa vista, por muito fraca, ficaria deslumbrada. 46 – Allan Kardec

CAPÍTULO III

O BEM E O MAL

ORIGEM DO BEM E DO MAL

O INSTINTO E A INTELIGÊNCIA

DESTRUIÇÃO DOS SERES VIVOS UNS PELOS OUTROS

 

ORIGEM DO BEM E DO MAL

1. Como Deus é o princípio de todas as coisas e todo-sabedoria, todo-bondade, todo-justiça, tudo o que procede d’Ele há de participar dos Seus atributos, porque o que é infinitamente sábio, justo e bom nada pode produzir que seja confuso, mau e injusto. O mal que observamos não pode ter a sua origem n’Ele.

2. Se o mal estivesse nas características de um ser especial – seja o que chamamos Arimane42, seja o que chamamos Satanás –, ou ele seria igual a Deus, e, por conseguinte, tão poderoso quanto Este, e de toda a eternidade como Ele, ou seria inferior.

42 Arimane: na religião zoroástrica (antiga religião dos persas), significa o princípio do mal, senhor das trevas, equivalente ao tradicional Demônio – N. D.

No primeiro caso, haveria duas potências rivais, incessantemente em luta, procurando cada uma desfazer o que a outra fizesse, contrariando-se mutuamente – hipótese esta inconciliável com a unidade de vistas que se revela na estrutura do Universo.

No segundo caso, sendo inferior a Deus, estaria subordinado a Ele. Não podendo existir de toda a eternidade como Deus, sem ser igual a este, teria tido um começo. Se fosse criado, só poderia ter sido por Deus, que, então, haveria criado o Espírito do mal, o que implicaria negação da bondade infinita. (ver: O CÉU E O INFERNO, cap. IX: “Os demônios”).

3. Entretanto, o mal existe e tem uma causa.

Os males de toda espécie, físicos ou morais, que afligem a Humanidade, formam duas categorias que devemos distinguir: a dos males que o homem pode evitar e a dos que lhe independem da vontade. Entre os últimos, devemos incluir os flagelos naturais.

O homem (que tem as capacidades limitadas) não pode compreender, nem abraçar o conjunto das normas do Criador; aprecia as coisas do ponto de 47 – A GÊNESE

vista da sua personalidade, dos interesses concretos e convencionais que criou para si mesmo e que não se compreendem na ordem da Natureza. Por isso é que, muitas vezes, aquilo que consideraria justo e admirável, lhe parece mau e injusto, caso conhecesse a causa, o objetivo e o resultado definitivo. Pesquisando a razão de ser e a utilidade de cada coisa, verificará que tudo traz o sinal da sabedoria infinita e se dobrará a essa sabedoria, mesmo com relação ao que não lhe seja compreensível.

4. O homem recebeu uma inteligência com a qual é possível prevenir, ou pelo menos, atenuar os efeitos de todos os flagelos naturais. Quanto mais saber ele adquire e mais se adianta em civilização, menos desastrosos se tornam os flagelos. Com uma organização sábia e previdente, ele chegará mesmo a neutralizar as suas consequências, quando não possam ser inteiramente evitados. Assim, com referência, até, aos flagelos que têm certa utilidade para a ordem geral da Natureza e para o futuro, mas que, no presente, causam danos, facultou Deus ao homem os meios de lhes paralisar os efeitos.

Assim é que ele saneia as regiões insalubres, imuniza contra os miasmas danosos, fertiliza terras áridas e se orienta em preservá-las das inundações; constrói habitações mais saldáveis, mais sólidas para resistirem aos ventos tão necessários à purificação da atmosfera e se coloca ao abrigo das tempestades. Finalmente, é assim que pouco a pouco a necessidade lhe fez criar as ciências, por meio das quais melhora as condições de habitação do globo e aumenta o seu próprio bem-estar.

5. Como o homem tem que progredir, os males a que se acha exposto são um estimulante para o exercício da sua inteligência e de todas as suas capacidades físicas e morais, incitando-o a procurar os meios de evitar esses malefícios. Se ele não tivesse que temer nada, nenhuma necessidade o induziria a procurar o melhor; seu espírito se entorpeceria na inatividade; nada inventaria e nem descobriria. A dor é o estímulo que impulsiona o homem para frente, na estrada do progresso.

6. Porém, os males mais numerosos são os que o homem cria pelos seus vícios, os que provêm do seu orgulho, do seu egoísmo, da sua ambição e de seus excessos em tudo. Aí está a causa das guerras e das calamidades que estas acarretam, dos conflitos, das injustiças, da opressão do fraco pelo forte, da maior parte, afinal, das enfermidades.

Deus estabeleceu leis plenas de sabedoria, tendo por único objetivo o bem. O homem encontra em si mesmo tudo o que lhe é necessário para cumpri-las. A consciência lhe traça a rota, a lei divina está gravada no seu coração e, além do mais, Deus lhe lembra delas constantemente por intermédio de seus messias e profetas, de todos os Espíritos encarnados que trazem a missão de esclarecer, de moralizar e melhorar a humanidade, e, nestes últimos tempos, pela multidão dos Espíritos desencarnados que se manifestam em toda parte. Se o homem se conformasse rigorosamente com as leis divinas, não há 48 – Allan Kardec

duvidar de que se pouparia dos mais cruéis males e viveria feliz na Terra. Se assim procede, é por virtude do seu livre-arbítrio: então, ele sofre as consequências do seu proceder (O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO, cap. V, itens 4, 5, 6 e seguintes),

7. Entretanto, Deus – que é todo-bondade –, colocou o remédio ao lado do mal, isto é, faz que do próprio mal saia o remédio. Chega um momento em que o excesso do mal moral se torna intolerável e impõe ao homem a necessidade de mudar de vida. Instruído pela experiência, ele se sente forçado a procurar a solução no bem, sempre por efeito do seu livre-arbítrio. Quando toma melhor caminho, é por sua vontade e porque reconheceu os inconvenientes do outro. Portanto, a necessidade o constrange a melhorar-se moralmente, para ser mais feliz, do mesmo modo que o constrangeu a melhorar as condições materiais da sua existência (nº 5).

8. Podemos dizer que o mal é a ausência do bem, como o frio é a ausência do calor. Assim como o frio não é um fluido especial, o mal também não é atributo diferente; um é o negativo do outro. Onde não existe o bem, obrigatoriamente existe o mal. Não praticar o mal, já é um princípio do bem. Deus somente quer o bem; o mal só procede do homem. Se na criação houvesse um ser preposto ao mal, ninguém o poderia evitar; mas, como o homem tem a causa do mal em SI MESMO, tendo simultaneamente o livre-arbítrio e por guia as leis divinas, poderá evitá-lo sempre que queira.

Tomemos para meio de comparação um fato vulgar. Um proprietário sabe que nos confins de suas terras há um lugar perigoso, onde quem por lá se aventurasse poderia perecer ou ferir-se. Que faz, a fim de prevenir os acidentes? Manda colocar perto um aviso, tornando proibido ao caminhante ir mais longe, por motivo do perigo. Aí está a lei, que é sábia e previdente. Se, apesar de tudo, um imprudente desatende o aviso, vai além do ponto onde este se encontra e sai-se mal, de quem ele se pode queixar, senão de si próprio?

Outro tanto se dá com o mal: a humanidade o evitaria, se cumprisse as leis divinas. Por exemplo: Deus pôs limite à satisfação das necessidades: a saciedade adverte o homem desse limite; se o homem ultrapassa, faz isso voluntariamente. As doenças, as enfermidades, a morte, que daí podem resultar, vêm da sua imprevidência – não de Deus.

9. Por que o mal decorre das imperfeições do homem e por que este foi criado por Deus, dirão que Deus não deixa de ter criado, se não o mal, pelo menos, a causa do mal; se houvesse criado o homem perfeito, o mal não existiria.

Se fosse criado perfeito, o homem fatalmente penderia para o bem. Ora, em virtude do seu livre-arbítrio, ele não pende fatalmente nem para o bem, nem para o mal. Quis Deus que ele ficasse sujeito à lei do progresso e que o progresso resulte do seu trabalho, a fim de que lhe pertença o fruto deste, da mesma maneira que lhe cabe a responsabilidade do mal que por sua vontade 49 – A GÊNESE

pratique. Logo, a questão consiste em sabermos no homem, qual é a origem da sua tendência para o mal.43

43 O erro está em pretendermos que a alma tenh saído perfeita das mãos do Criador, quando este, ao contrário, quis que a perfeição resulte da depuração gradual do Espírito e seja obra sua. Houve Deus por bem que a alma, dotada de livre-arbítrio, pudesse optar entre o bem e o mal e chegasse a suas finalidades últimas de forma militante e resistindo ao mal. Se tivesse criado a alma tão perfeita quanto ele e, ao sair-lhe ela das mãos, a tivesse associado à sua beatitude eterna, Deus teria feito, não à sua imagem, mas semelhante a si próprio. (Bonnamy, A Razão do Espiritismo, cap. VI).

10. Estudando todas as paixões e, mesmo, todos os vícios, vemos que as raízes de umas e outros se acham no instinto de conservação, instinto que se encontra em toda a pujança nos animais e nos seres primitivos mais próximos da animalidade, nos quais ele exclusivamente domina, sem o contrapeso do senso moral, por ainda não ter o ser nascido para a vida intelectual. O instinto se enfraquece, à medida que a inteligência se desenvolve, porque esta domina a matéria.

O Espírito tem por destino a vida espiritual, porém, nas primeiras fases da sua existência corpórea, somente lhe cabe satisfazer às exigências materiais e, para isso, o exercício das paixões constitui uma necessidade para o efeito da conservação da espécie e dos indivíduos, materialmente falando. Mas, uma vez saído desse período, outras necessidades se apresentam a ele, a princípio semimorais e semimateriais, depois exclusivamente morais. É então que o Espírito exerce domínio sobre a matéria, sacode-lhe o jugo, avança pela senda providencial que se lhe acha traçada e se aproxima do seu destino final. Se, ao contrário, ele se deixa dominar pela matéria, atrasa-se e se identifica com o bruto. Nessa situação, o que era um bem noutros tempos – porque era uma necessidade da sua natureza –, transforma-se num mal, não só porque já não constitui uma necessidade, como porque se torna prejudicial à espiritualização do ser. Muita coisa, que é qualidade na criança, torna-se defeito no adulto. Sintetizado, o mal é relativo e a responsabilidade é proporcionada ao grau de adiantamento.

Portanto, todas as paixões têm uma utilidade providencial, visto que, a não ser assim, Deus teria feito coisas inúteis e até nocivas. É no abuso que o mal reside e o homem abusa em virtude do seu livre-arbítrio. Mais tarde, esclarecido pelo seu próprio interesse, livremente escolhe entre o bem e o mal.

O INSTINTO E A INTELIGÊNCIA

11. Qual a diferença entre o instinto e a inteligência? Onde acaba um e o outro começa? O instinto será uma inteligência rudimentar, ou será uma faculdade distinta, um atributo exclusivo da matéria?

O instinto é a força oculta que solicita os seres orgânicos a atos espontâneos e involuntários, tendo em vista a conservação deles. Nos atos instintivos não há reflexão, nem combinação, nem premeditação. É assim que a planta procura o ar, se volta para a luz, dirige suas raízes para a água e para a 50 – Allan Kardec

terra nutriente; que a flor se abre e fecha alternativamente, conforme se lhe faz necessário; que as plantas trepadeiras se enroscam em torno daquilo que lhes serve de apoio, ou se lhe agarram com as gavinhas. É pelo instinto que os animais são avisados do que lhes convém ou prejudica; que buscam, conforme a estação, os climas propícios; que constroem, sem ensino prévio, com mais ou menos arte, segundo as espécies, leitos macios e abrigos para as suas crias, armadilhas para apanhar a presa de que se nutrem; que manejam destramente as armas ofensivas e defensivas de que são providos; que os sexos se aproximam; que a mãe choca os filhos e que estes procuram o seio materno. No homem, só em começo da vida o instinto domina com exclusividade; é por instinto que a criança faz os primeiros movimentos, que toma o alimento, que grita para exprimir as suas necessidades, que imita o som da voz, que tenta falar e andar. No próprio adulto, certos atos são instintivos, tais como os movimentos espontâneos para evitar um risco, para fugir a um perigo, para manter o equilíbrio do corpo; tais ainda o piscar das pálpebras para moderar o brilho da luz, o abrir maquinal da boca para respirar, etc.

12. A inteligência se revela por atos voluntários, refletidos, premeditados, combinados, de acordo com a oportunidade das circunstâncias. É incontestavelmente um atributo exclusivo da alma.

Todo ato maquinal é instintivo; o ato que demonstra reflexão, combinação e deliberação é inteligente. Um é livre, o outro não o é.

O instinto é guia seguro, que nunca se engana; a inteligência, pelo simples fato de ser livre, por vezes está sujeita a errar.

Ao ato instintivo falta o caráter do ato inteligente; entretanto, revela uma causa inteligente, essencialmente apta a prever. Se admitirmos que o instinto procede da matéria, teremos de admitir que a matéria é inteligente, até mesmo bem mais inteligente e previdente do que a alma, pois que o instinto não se engana, ao passo que a inteligência se equivoca.

Se considerarmos o instinto uma inteligência rudimentar, como explicaremos que, em certos casos, à inteligência que raciocina seja superior? Como explicar que torne possível que se executem atos que esta não pode realizar? Se ele é atributo de um princípio espiritual de especial natureza, qual vem a ser esse princípio? Por que o instinto se apaga, será que esse princípio se destrua? Se os animais são dotados apenas de instinto, não tem solução o destino deles e nenhuma compensação os seus sofrimentos, o que não estaria de acordo nem com a justiça, nem com a bondade de Deus. (Cap. II, 19.)

13. Segundo outras doutrinas, o instinto e a inteligência procederiam de um único princípio. Chegado a certo grau de desenvolvimento, esse princípio – que primeiramente apenas teve as qualidades do instinto – passaria por uma transformação que lhe daria as da inteligência livre.

Se fosse assim, no homem inteligente que perde a razão e passa a ser guiado exclusivamente pelo instinto, a inteligência voltaria ao seu estado primitivo e, quando o homem recuperasse a razão, o instinto se tornaria 51 – A GÊNESE

inteligência e assim alternativamente, a cada acesso, o que não é admissível.

Aliás, é frequente o instinto e a inteligência se revelarem simultaneamente no mesmo ato. Por exemplo, o movimento das pernas no caminhar é instintivo; o homem põe maquinalmente um pé à frente do outro, sem pensar nisso; porém, quando ele quer acelerar ou demorar o passo, levantar o pé ou se desviar de um tropeço, há cálculo e vontade; ele age com propósito deliberado. A impulsão involuntária do movimento é o ato instintivo; a calculada direção do movimento é o ato inteligente. O animal carnívoro é impelido pelo instinto a se alimentar de carne, mas as precauções que toma e que variam conforme as circunstâncias, para segurar a presa, a sua previdência das eventualidades são atos da inteligência.

14. Em suma, outra hipótese que se confirma perfeitamente à ideia da unidade de princípio, ressalta do caráter essencialmente previdente do instinto e concorda com o que o Espiritismo ensina, no tocante às relações do mundo espiritual com o mundo corpóreo.

Sabe-se agora que muitos Espíritos desencarnados têm por missão velar pelos encarnados, dos quais se constituem protetores e guias; que os envolvem nos seus eflúvios fluídicos; que o homem age muitas vezes de modo inconsciente, sob a ação desses eflúvios.

Além do mais, sabemos que o instinto – que por si mesmo produz atos inconscientes – predomina nas crianças e, em geral, nos seres cuja razão é fraca. Ora, segundo esta hipótese, o instinto não seria atributo nem da alma, nem da matéria; não pertenceria propriamente ao ser vivo, seria efeito da ação direta dos protetores invisíveis que preencheriam a imperfeição da inteligência, provocando os atos inconscientes necessários à conservação do ser. Seria igual à andadeira44 com que se amparam as crianças que ainda não sabem andar. Então, do mesmo modo que se deixa gradualmente de usar a andadeira, à medida que a criança se equilibra sozinha, os Espíritos protetores deixam os seus protegidos entregues a si mesmos, à medida que estes se tornam aptos a se guiar pela própria inteligência.

44 Andadeira: andajá, andador, aparelho usado para crianças desenvolveram a capacidade de andar – N. D.

Assim, longe de ser produto de uma inteligência rudimentar e incompleta, o instinto seria de uma inteligência estranha, na plenitude da sua força, inteligência protetora, supletiva da insuficiência, quer de uma inteligência mais jovem, que aquela compeliria a fazer, inconscientemente, para seu bem, o que ainda fosse incapaz de fazer por si mesma, quer de uma inteligência madura, porém, momentaneamente tolhida no uso de seus talentos, como se dá com o homem na infância e nos casos de deficiência e de afecções mentais.

Diz-se proverbialmente que há um deus para as crianças, para os loucos e para os ébrios. Esse ditado é mais verdadeiro do que se supõe. Aquele deus não é outro senão o Espírito protetor, que vela pela entidade incapaz de se proteger, utilizando-se da sua própria razão. 52 – Allan Kardec

15. Nesta ordem de ideias, podemos ir ainda mais longe. Por muito racional que seja, essa teoria não resolve todas as dificuldades da questão.

Se observarmos os efeitos do instinto, em primeiro lugar, notaremos uma unidade de vistas e de conjunto, uma segurança de resultados, que acabam logo que a inteligência o substitui. Demais, reconheceremos profunda sabedoria na apropriação tão perfeita e tão constante das aptidões instintivas às necessidades de cada espécie. Semelhante unidade de vistas não poderia existir sem a unidade de pensamento e esta é incompatível com a diversidade das competências individuais; só ela poderia produzir esse conjunto tão harmonioso que se realiza desde a origem dos tempos e em todos os climas, com uma regularidade, uma precisão matemáticas, cuja ausência jamais se nota. A uniformidade no que resulta das faculdades instintivas é um fato característico, que obrigatoriamente implica a unidade da causa. Se a causa fosse pertencente a cada individualidade, haveria tantas variedades de instintos quantos fossem os indivíduos, desde a planta até o homem. Um efeito geral, uniforme e constante, há de ter uma causa geral, uniforme e constante; um efeito que atesta sabedoria e previdência há de ter uma causa sábia e previdente. Ora, uma causa dessa natureza, sendo por força inteligente, não pode ser exclusivamente material.

Não nos deparando nas criaturas – encarnadas ou desencarnadas –, as qualidades necessárias à produção de tal resultado, temos que subir mais alto, isto é, ao próprio Criador. Se nos reportamos à explicação dada sobre a maneira por que se pode conceber a ação providencial (cap. II, nº 24); se figurarmos todos os seres penetrados do fluido divino, soberanamente inteligente, compreenderemos a sabedoria previdente e a unidade de vistas que presidem a todos os movimentos instintivos que se efetuam para o bem de cada indivíduo. Tanto mais ativa é essa solicitude, quanto menos recursos tem o indivíduo em si mesmo e na sua inteligência. Por isso é que ela se mostra maior e mais absoluta nos animais e nos seres inferiores, do que no homem.

Segundo essa teoria, compreende-se que o instinto seja um guia seguro. O instinto materno – o mais nobre de todos –, que o materialismo rebaixa ao nível das forças atrativas da matéria, fica realçado e enobrecido. Em razão das suas consequências, ele não devia ser entregue às eventualidades caprichosas da inteligência e do livre-arbítrio. Por intermédio da mãe, o próprio Deus vela pelas suas criaturas que nascem.

16. Esta teoria de nenhum modo anula o papel dos Espíritos protetores, cujo auxílio é fato observado e comprovado pela experiência; mas, devemos notar que a ação desses Espíritos é essencialmente individual; que se modifica segundo as qualidades próprias do protetor e do protegido e que em parte nenhuma apresenta a igualdade e a generalidade do instinto. Em sua sabedoria, o próprio Deus conduz os cegos, porém confia a inteligências livres o cuidado de guiar os clarividentes, para deixar a cada um a responsabilidade de seus atos. A missão dos Espíritos protetores é um dever que eles aceitam voluntariamente e é um meio deles evoluírem, dependendo da forma como 53 – A GÊNESE

desempenhem tal missão.

17. Todas essas maneiras de considerar o instinto são necessariamente hipotéticas e nenhuma apresenta caráter seguro de autenticidade, para ser tida como solução definitiva. Sem dúvida, a questão será resolvida um dia, quando tivermos reunido os elementos de observação que ainda nos faltam. Até lá, temos que nos limitar a submeter as diversas opiniões ao exame da razão e da lógica e esperar que a luz se faça. A solução que mais se aproxima da verdade será decerto a que melhor condiga com os atributos de Deus, isto é, com a bondade suprema e a suprema justiça (Cap. II, nº 19).

18. Como o instinto é o guia e as paixões são as molas da alma no período inicial do seu desenvolvimento, por vezes esse instinto e estas paixões se confundem nos efeitos. Contudo, entre esses dois princípios há diferenças que muito devemos considerar.

O instinto é guia seguro, sempre bom. Ao fim de certo tempo, pode se tornar inútil, porém nunca prejudicial. Enfraquece-se pela predominância da inteligência. As paixões, nas primeiras idades da alma, têm de comum com o instinto o fato de serem as criaturas solicitadas por uma força igualmente inconsciente.

As paixões nascem principalmente das necessidades do corpo e dependem do organismo mais do que o instinto. O que, acima de tudo, as distingue do instinto é que são individuais e não produzem, como este último, efeitos gerais e uniformes; variam, ao contrário, de intensidade e de natureza, conforme os indivíduos. São úteis, como estimulante, até à eclosão do senso moral, que faz que nasça de um ser passivo, um ser racional. Nesse momento, tornam-se não só inúteis, como prejudiciais ao progresso do Espírito, cuja desmaterialização retardam. Abrandam-se com o desenvolvimento da razão.

19. O homem que só agisse pelo instinto constantemente poderia ser muito bom, mas conservaria adormecida a sua inteligência. Seria igual criança que não deixasse as andadeiras e não soubesse se utilizar de seus membros. Aquele que não domina as suas paixões pode ser muito inteligente, porém, ao mesmo tempo, muito mau. O instinto se aniquila por si mesmo; as paixões só podem se domar somente pelo esforço da vontade.

DESTRUIÇÃO DOS SERES VIVOS UNS PELOS OUTROS

20. A destruição recíproca dos seres vivos é, dentre as leis da Natureza, uma das que, à primeira vista, menos parecem se conciliar com a bondade de Deus. Pergunta-se por que Ele neles criou a necessidade de mutuamente se destruírem, para se alimentarem uns à custa dos outros.

Para quem apenas vê a matéria e restringe a sua visão à vida presente, certamente, há de isso parecer uma imperfeição na obra divina. É que, em geral, 54 – Allan Kardec

os homens apreciam a perfeição de Deus do ponto de vista humano; medindo Sua sabedoria pelo juízo que fazem dela, pensam que Deus não poderia fazer coisa melhor do que eles próprios fariam. Não lhes permitindo a curta visão, de que dispõem, apreciar o conjunto, não compreendem que um bem real possa decorrer de um mal aparente. Só o conhecimento do princípio espiritual, considerado em sua verdadeira essência, e o da grande lei de unidade, que constitui a harmonia da criação, pode dar ao homem a chave desse mistério e mostrar a ele a sabedoria providencial e a harmonia – exatamente onde apenas vê uma anomalia e uma contradição.

21. A verdadeira vida, tanto do animal como do homem, não está na roupa corporal, do mesmo que não está no vestuário. Está no princípio inteligente que preexiste e sobrevive ao corpo. Esse princípio necessita do corpo, para se desenvolver pelo trabalho que lhe cumpre realizar sobre a matéria bruta.

O corpo se consome nesse trabalho, mas o Espírito não se gasta; ao contrário, sai dele cada vez mais forte, mais lúcido e mais apto. pois, que importa que o Espírito mude mais ou menos frequentemente de envoltório?! Não deixa por isso de ser Espírito. É precisamente como se um homem mudasse cem vezes no ano as suas vestes. Não deixaria por isso de ser homem.

Por meio do incessante espetáculo da destruição, Deus ensina aos homens o pouco caso que devem fazer do envoltório material e lhes suscita a ideia da vida espiritual, fazendo que a desejem como uma compensação.

Irão questionar: Deus não podia chegar ao mesmo resultado por outros meios, sem constranger os seres vivos a se destruírem entre si? Desde que na Sua obra tudo é sabedoria, devemos supor que esta não existirá mais num ponto do que noutros; se não compreendemos assim, devemos atribuí-lo à nossa falta de adiantamento. Contudo, podemos tentar a pesquisa da razão do que nos pareça defeituoso, tomando por medida este princípio: Deus há de ser infinitamente justo e sábio. Portanto, em tudo, procuraremos a Sua justiça e a Sua sabedoria e nos curvemos diante do que ultrapasse o nosso entendimento.

22. Dessa destruição, se apresenta uma primeira utilidade – sem dúvida, utilidade puramente física –: os corpos orgânicos só se conservam com o auxílio das matérias orgânicas, matérias que só elas contêm os elementos nutritivos necessários à transformação deles. Como instrumentos de ação para o princípio inteligente, os corpos precisam ser constantemente renovados, a Providência faz que sirvam ao seu mútuo entretenimento. Eis por que os seres se nutrem uns dos outros. Mas, então, é o corpo que se nutre do corpo, sem que o Espírito se aniquile ou altere. Fica apenas livre do seu envoltório45.

45 Veja REVISTA ESPÍRITA, agosto de 1864: ―Extinção das raças‖.

23. Há também considerações morais de ordem elevada.

A luta é necessária para o desenvolvimento do Espírito. É na luta que ele exercita suas faculdades. O que ataca em busca do alimento e aquele que se 55 – A GÊNESE

defende para conservar a vida usam de habilidade e inteligência, consequentemente, aumentando suas forças intelectuais. Um dos dois tomba; mas, na realidade, o que foi que o mais forte ou o mais habilidoso tirou a mais do fraco? – A veste de carne, nada mais; posteriormente, o Espírito (que não morreu) tomará outro corpo.

24. Nos seres inferiores da criação – naqueles a quem ainda falta o senso moral, nos quais a inteligência ainda não substituiu o instinto –, a luta não pode ter por fim senão a satisfação de uma necessidade material. Ora, uma das mais imperiosas dessas necessidades é a da alimentação. Pois, eles lutam unicamente para viver, isto é, para fazer ou defender uma presa, visto que nenhum objetivo mais elevado poderia estimulá-los. É nesse primeiro período que a alma se elabora e ensaia para a vida.

No homem, há um período de transição em que ele mal se diferencia do bruto. Nas primeiras idades, o instinto animal domina e a luta ainda tem por meta a satisfação das necessidades materiais. Mais tarde, o instinto animal e o sentimento moral se contrabalançam; então o homem luta, não mais para se alimentar, porém, para satisfazer à sua ambição, ao seu orgulho, à necessidade que experimenta de dominar. Para isso, ainda é preciso ele destruir. Todavia, à medida que o senso moral supera, desenvolve-se a sensibilidade, diminui a necessidade de destruir, acaba mesmo por desaparecer, por se tornar odiosa. O homem ganha horror ao sangue.

Contudo, a luta é sempre necessária ao desenvolvimento do Espírito, pois, mesmo chegando a esse ponto, que parece culminante, ele ainda está longe de ser perfeito. Só adquire conhecimento e experiência à custa de muita atividade, e se despoja dos últimos vestígios da animalidade Mas nessa ocasião, a luta – de sangrenta e brutal que era – se torna puramente intelectual. O homem luta contra as dificuldades, não mais contra os seus semelhantes46.

46 Sem prejulgar das consequências que se possam tirar desse princípio, apenas quisemos demonstrar com essa explicação que a destruição de uns seres vivos por outros em nada diminui a sabedoria divina e que tudo se encadeia nas leis da Natureza. Esse encadeamento forçosamente se quebra, desde que se tire do princípio espiritual. Muitas questões permanecem sem solução quando só se levar em conta a matéria.

As doutrinas materialistas trazem em si o princípio de sua própria destruição. Têm contra si não só o antagonismo em que se acham com as aspirações da universalidade dos homens e suas consequências morais (que farão que elas sejam repelidas como dissolventes da sociedade), mas também a necessidade que o homem experimenta de se inteirar de tudo o que resulta do progresso. O desenvolvimento intelectual conduz o homem à pesquisa das causas. Ora, por pouco que ele reflita, não tardará a reconhecer a impotência do materialismo para explicar tudo. Como é possível que doutrinas que não satisfazem ao coração, nem à razão, nem à inteligência, que deixam problemáticas as mais vitais questões, venham a prevalecer? O progresso das ideias matará o materialismo, como matou o fanatismo. 56 – Allan Kardec

CAPÍTULO IV

PAPEL DA CIÊNCIA

NA GÊNESE

1. A história da origem de quase todos os povos antigos se confunde com a da religião deles, o que explica por que seus primeiros livros terem sido religiosos. E como todas as religiões se ligam ao princípio das coisas – que é também o da Humanidade –, elas deram, sobre a formação e o arranjo do Universo, explicações em concordância com o estado dos conhecimentos da época e de seus fundadores. Daí resultou que os primeiros livros sagrados foram ao mesmo tempo os primeiros livros de ciência, como foram o código único das leis civis, durante largo período.

2. Nas eras primitivas, como os meios de observação eram necessariamente muito imperfeitos, as primeiras teorias sobre o sistema do mundo haviam de ser muito carregadas de erros grosseiros. Mas, ainda quando esses meios fossem tão completos quanto são os de hoje, os homens não teriam sabido utilizá-los. Aliás, tais meios só podiam ser fruto do desenvolvimento da inteligência e do resultante conhecimento das leis da Natureza. À medida que o homem foi se adiantando no conhecimento dessas leis, ele também foi penetrando os mistérios da criação e retificando as ideias que formulou acerca da origem das coisas.

3. Ele se mostrou impotente para resolver o problema da criação, até o momento em que a Ciência lhe forneceu a chave para isso. Teve de esperar que a Astronomia lhe abrisse as portas do espaço infinito e lhe permitisse mergulhar o olhar aí; que, pelo poder do cálculo, lhe tornasse possível determinar com rigorosa exatidão o movimento, a posição, o volume, a natureza e o papel dos corpos celestes; que a Física lhe revelasse as leis da gravitação, do calor, da luz e da eletricidade; que a Química lhe mostrasse as transformações da matéria e a Mineralogia os materiais que formam a superfície do globo; que a Geologia lhe ensinasse a ler a formação gradual desse mesmo globo nas camadas terrestres. À Botânica, à Zoologia, à Paleontologia, à Antropologia coube iniciá-lo na filiação e sucessão dos seres organizados. Com a Arqueologia ele pode acompanhar os traços que a Humanidade deixou 57 – A GÊNESE

através das idades. Resumindo, completando-se umas às outras, todas as ciências tiveram que contribuir com o que era indispensável para o conhecimento da história do mundo. Em falta dessas contribuições, o homem teve como guia as suas primeiras hipóteses.

Por isso, antes que ele entrasse na posse daqueles elementos de apreciação, todos os comentadores da Gênese – cuja razão esbarrava em impossibilidades materiais – giravam dentro de um círculo, sem conseguirem sair dele. Só conseguiram quando a Ciência abriu caminho, abalando o velho edifício das crenças. Tudo então mudou de aspecto. Uma vez achado o fio condutor do entendimento, as dificuldades prontamente se aplanaram. Em vez de uma Gênese imaginária, surgiu uma Gênese positiva e, de certo modo, experimental. O campo do Universo se alargou ao infinito. Acompanhou-se a formação gradual da Terra e dos astros, segundo leis eternas e imutáveis, que demonstram muito melhor a grandeza e a sabedoria de Deus, do que uma criação fabulosa e tirada repentinamente do nada, como mutação à vista, por efeito de súbita ideia da Divindade, após uma eternidade de indecisão.

Como que é impossível concebermos a Gênese sem os dados que a Ciência fornece, podemos dizer com inteira verdade que: a Ciência é chamada a constituir a verdadeira Gênese, segundo a lei da Natureza.

4. No ponto a que chegou ao século dezenove, a Ciência venceu todas as dificuldades do problema da Gênese?

Certamente não; mas, não há o que contestar que ela destruiu todos os erros principais, sem volta, e lançou os fundamentos essenciais sobre dados irrecusáveis. A bem dizer, os pontos ainda duvidosos não passam de questões de detalhes, cuja solução não poderá prejudicar o conjunto, qualquer que venha a ser no futuro. E mais, apesar dos recursos que ela tem tido à sua disposição, faltou-lhe, até agora, um elemento importante, sem o qual jamais a obra poderia se completar.

5. De todas as Gêneses antigas, a que mais se aproxima dos modernos dados científicos – mesmo com os erros que contém, postos hoje em evidência – é incontestavelmente a de Moisés. De fato, alguns desses erros são mais aparentes do que reais e vêm, ou de falsa interpretação atribuída a certos termos – cuja antiga significação se perdeu, ao passarem de língua em língua pela tradução, ou cuja acepção mudou com os costumes dos povos, ou, também, decorrem da forma simbólica própria ao estilo oriental e que foi tomada ao pé da letra, em vez de se procurar seu sentido.

6. Evidentemente que a Bíblia contém fatos que a razão (desenvolvida pela Ciência) não poderia aceitar hoje e outros fatos que parecem estranhos e derivam de costumes que já não são os nossos. Mas, ao lado disso, haveria parcialidade em não reconhecermos que ela guarda grandes e belas coisas. A simbologia ocupa ali espaço considerável, ocultando sob o seu véu sublimes verdades, que se evidenciam desde que penetremos no íntimo do pensamento, 58 – Allan Kardec

pois o absurdo logo desaparece.

Por que então o véu não se ergueu mais cedo? De um lado, por falta de luzes que só a Ciência e uma sã filosofia podiam fornecer e, de outro lado, por efeito do princípio da imutabilidade absoluta da fé, consequência de um respeito muito cego à letra, e, assim, pelo temor de comprometer a estrutura das crenças, erguida sobre o sentido literal. Como essas crenças, parte de um ponto primitivo, houve o receio de que se o primeiro anel da cadeia se rompesse, todas as malhas da rede acabassem separando-se. Enfim, fecharam-se os olhos teimosamente. Mas, fechar os olhos ao perigo não é evitá-lo. Quando uma construção se afasta do prumo, a prudência manda que se substituam imediatamente as pedras ruins por pedras boas, em vez de se esperar que o mal se torne irremediável – pelo respeito que infunda a vetustez do edifício – e que se faça preciso reconstruí-lo de cima a baixo.

7. Levando suas investigações às profundezas da Terra e dos céus, a Ciência demonstrou de maneira incontestável os erros da Gênese escrita por Moisés –tomada ao pé da letra – e a impossibilidade material de as coisas terem se passado como são referidas textualmente ali. Ora, do mesmo modo e procedendo assim, a Ciência desferiu um forte golpe em crenças existentes há séculos. A fé ortodoxa (rigorosa) se sobressaltou, porque julgou que lhe tiravam a pedra fundamental. Mas, com quem a razão havia de estar: com a Ciência – que caminhava prudente e progressivamente pelos terrenos sólidos dos algarismos e da observação, sem nada afirmar antes de ter em mãos as provas – ou com uma narrativa escrita quando absolutamente faltavam os meios de observação? No fim de contas, quem há de levar a melhor: aquele que diz 2 e 2 fazem 5 e se nega a verificar, ou aquele que diz que 2 e 2 fazem 4 e dá a prova?

8. Mas, alguns contestam: se a Bíblia é uma revelação divina, então Deus se enganou. Se não é uma revelação divina, precisa de autoridade e a religião desmorona por falta de alicerce.

Uma de duas: ou a Ciência está em erro, ou tem razão. Se tem razão, não pode fazer que uma opinião oposta seja verdadeira. Não há revelação que possa se sobrepor à autoridade dos fatos.

Incontestavelmente, não é possível que Deus – sendo todo verdade – induza os homens ao erro, nem ciente, nem inscientemente, pois, do contrário, Ele não seria Deus. Logo, se os fatos contradizem as palavras que lhe são atribuídas, o que se deve logicamente concluir é que Ele não pronunciou tais palavras, ou que elas palavras foram entendidas em sentido oposto ao seu real significado.

Com semelhantes contradições, se a religião sofre dano, a culpa não é da Ciência, que não pode fazer que o que é deixe de ser; mas dos homens, por haverem prematuramente estabelecido dogmas absolutos, de cujo prevalecimento tem feito questão de vida ou de morte, sobre hipóteses suscetíveis de serem desmentidas pela experiência.

Há coisas com cujo sacrifício temos de nos resignar – de boa ou má 59 – A GÊNESE

vontade – quando não consigamos evitá-lo. Desde que o mundo marcha, sem que a vontade de alguns possa detê-lo, o mais sensato é que o acompanhemos e nos acomodemos com o novo estado de coisas, em vez de nos agarrarmos ao passado que se desmorona, com o risco de sermos arrastados na queda.

9. A Ciência deveria se obrigar a calar-se por guardar respeito aos Textos Sagrados? Isso seria tão impossível, como impedir que a Terra gire. Sejam quais forem as religiões, elas jamais ganharam coisa alguma em sustentar erros comprovados. A Ciência tem por missão descobrir as leis da Natureza. Ora, sendo essas leis obra de Deus, não podem ser contrárias a religiões que se baseiem na verdade. Lançar maldição ao progresso, por atentado à religião, é lançar maldição à própria obra de Deus. Além do mais, é trabalho inútil, porque nem todas as maldiçoes do mundo seriam capazes de impedir que a Ciência avance e que a verdade abra caminho. Se a Religião se nega a avançar com a Ciência, a Ciência avançará sozinha.

10. Somente as religiões estacionárias podem temer as descobertas da Ciência, as quais só são fatais às que se deixam distanciar pelas ideias progressistas, imobilizando-se no absolutismo de suas crenças. Em geral, elas fazem um conceito tão mesquinho da Divindade que não compreendem que assimilar as leis da Natureza, que a Ciência revela, é glorificar a Deus em Suas obras. Na sua cegueira, porém, preferem render homenagem ao espírito do mal, atribuindo-lhe essas leis. Uma religião que não estivesse em contradição com as leis da Natureza – por nenhum ponto – nada teria que temer do progresso e seria invulnerável.

11. A Gênese se divide em duas partes: a história da formação do mundo material e da formação da Humanidade – considerada em seu duplo princípio: corporal e espiritual. A Ciência tem cuidado da pesquisa das leis que regem a matéria. No próprio homem, ela apenas tem estudado o envoltório carnal. Por esse lado, chegou a inteirar-se com exatidão das partes principais do mecanismo do Universo e do organismo humano. Assim, sobre esse ponto capital, a Ciência clássica pode completar a Gênese de Moisés e retificar desta as partes equivocadas.

Mas a história do homem (considerado como ser espiritual) se prende a uma ordem especial de ideias que não são do domínio da Ciência propriamente dita e das quais, por este motivo, ela não tem feito objeto de suas investigações. A Filosofia, que é a quem pertence essas atribuições, apenas tem formulado conceitos contraditórios sobre o ponto em questão, de modo mais particular, esse gênero de estudos, que vão desde a mais pura espiritualidade, até a negação do princípio espiritual e mesmo de Deus, sem outras bases, fora as ideias pessoais de seus autores. Pois então, tem deixado o assunto sem decisão por falta de verificação suficiente.

12. No entanto, esta questão é a mais importante para o homem, por isso que 60 – Allan Kardec

envolve o problema do seu passado e do seu futuro. A do mundo material apenas o afeta indiretamente. Antes de tudo, o que lhe importa saber é de onde ele veio e para onde vai, se já viveu e se ainda viverá, qual a sorte que está reservada a ele.

Sobre todos esses pontos, a Ciência se conserva muda. A Filosofia apenas emite opiniões que concluem em sentido diametralmente oposto, mas que, pelo menos, permitem que isso seja discutido – o que faz com que muitas pessoas coloquem do lado a Ciência e Filosofia, para preferirem seguir a religião, que não discute as opiniões.

13. Todas as religiões concordam com o princípio da existência da alma, contudo, sem demonstrar essa existência. Porém, não concordam nem quanto à origem dessa alma, nem com relação ao seu passado e ao seu futuro, nem principalmente – e isso é o essencial – quanto às condições de que depende a sua sorte futura. Em sua maioria, elas apresentam – e impõem à crença de seus adeptos – um quadro do futuro da alma que somente a fé cega pode aceitar, visto que não suporta exame sério. Ligado aos seus dogmas, às ideias que nos tempos primitivos se faziam do mundo material e do mecanismo do Universo, o destino que elas atribuem à alma não se concilia com o estado atual dos conhecimentos. Então, tendo o que perder com o exame e a discussão, as religiões acham mais simples anular um e outra.

14. A dúvida e a descrença nasceram dessas divergências sobre o futuro do homem. Entretanto, a falta de fé dá lugar a um penoso vazio. O homem encara com ansiedade o desconhecido em que tem fatalmente de penetrar. A ideia do nada o deixa gelado. A consciência lhe diz que alguma coisa lhe está reservada para além do presente. Que será? – Com o desenvolvimento que alcançou, sua razão já não lhe permite admitir as histórias com que o acalentaram na infância, nem aceitar como realidade a alegoria47. Qual o sentido dessa alegoria? – A Ciência lhe rasgou um canto do véu; mas não lhe revelou o que mais lhe importa saber. Ele interroga em vão, ela nada lhe responde de maneira definitiva e apropriada a lhe acalmar as apreensões. Por toda parte depara com a afirmação a se chocar com a negação, sem que de um lado ou de outro se apresentem provas positivas. Daí a incerteza, e a incerteza sobre a vida futura faz com que o homem se atire para as coisas da vida material, tomado de uma espécie de delírio.

47 Alegoria: forma de expressão ou interpretação que consiste em representar pensamentos através de figuras; linguagem simbólica – N. D.

Esse é o efeito inevitável das épocas de transição: cai o edifício do passado, sem que ainda o do futuro se ache construído. O homem se assemelha ao adolescente que, já não tendo a crença ingênua dos seus primeiros anos, ainda não possui os conhecimentos próprios da maturidade. Apenas sente vagas aspirações, que não sabe definir.

15. Se a questão do homem espiritual permaneceu até aos dias atuais em 61 – A GÊNESE

estado de teoria, é que faltavam os meios de observação direta, existentes para comprovar o estado do mundo material, portanto, conservando-se aberto o campo às concepções do espírito humano. Enquanto o homem não conheceu as leis que regem a matéria e não pôde aplicar o método experimental, andou a errar de sistema em sistema, no tocante ao mecanismo do Universo e à formação da Terra. O que se deu na ordem física, deu-se também na ordem moral. Faltou o elemento essencial para fixar as ideias: o conhecimento das leis a que o princípio espiritual se acha sujeito. Esse conhecimento estava reservado para nossa época, como o conhecimento das leis da matéria esteve aos dois últimos séculos.

16. Até o presente, o estudo do princípio espiritual (compreendido na Metafísica48) foi puramente especulativo e teórico. No Espiritismo, é inteiramente experimental. Com o auxílio da potência mediúnica – agora já mais desenvolvida e, sobretudo, generalizada e mais bem estudada –, o homem se achou de posse de um novo instrumento de observação. A mediunidade foi para o mundo espiritual o que o telescópio foi para o mundo espacial e o microscópio para o dos infinitamente pequenos. Permitiu que se explorassem e estudassem as relações do mundo espiritual com o mundo corporal – por assim dizer, com o testemunho visual; permitiu que se destacasse no homem vivo o ser inteligente (Espírito) do ser material (corpo) e que se observassem os dois a atuar separadamente. Uma vez estabelecidas relações com os habitantes do mundo espiritual, tornou-se possível ao homem seguir a alma em sua marcha ascendente, em suas migrações, em suas transformações. Enfim, pode-se estudar o elemento espiritual. Eis aí o que os anteriores comentadores da Gênese precisavam para a compreenderem e lhe retificarem os erros.

48 Metafísica: ramo dentro da Filosofia que estuda a essência e as leis do Universo, de Deus e da alma humana – N. D.

17. Estando o mundo espiritual e o mundo material em incessante contato, os dois são solidários; ambos têm a sua parcela de ação na Gênese. Compormos uma Gênese completa sem o conhecimento das leis que regem o mundo espiritual seria tão impossível quanto a um escultor dar vida a uma estátua. Somente agora o homem possui os dois elementos próprios para lançar luz sobre esse imenso problema – embora nem a Ciência material, nem a Ciência espiritual tenham dito a última palavra. Essas duas chaves eram absolutamente indispensáveis para chegar a uma solução – embora aproximativa. 62 – Allan Kardec

CAPÍTULO V

ANTIGOS E MODERNOS SISTEMAS DO MUNDO

1. A primeira ideia que os homens formaram da Terra, do movimento dos astros e da constituição do Universo, a princípio, há de ter-se baseado unicamente no que os sentidos percebiam. Desconhecendo as mais elementares leis da Física e as forças da Natureza, só dispondo da vista como meio de observação, eles podiam julgar apenas pelas aparências.

Vendo o Sol aparecer pela manhã, de um lado do horizonte, e desaparecer, à tarde, do lado oposto, concluíram naturalmente que ele girava em torno da Terra, e esta se conservaria imóvel. Se lhes dissessem então que o contrário é o que se dá, responderiam que tal coisa não seria possível, contestando: vemos que o Sol muda de lugar e não sentimos que a Terra se mexa.

2. A pequena extensão das viagens (que naquela época raramente iam além dos limites da tribo ou do vale) não permitia a comprovação que a Terra era uma esfera. E além disso, como haviam de supor que a Terra fosse uma bola? Em tal caso, os seres somente poderiam se manter no ponto mais elevado e, supondo-a habitada em toda a superfície, como viveriam eles no hemisfério oposto, com a cabeça para baixo e os pés para cima? Ainda menos possível isso teria parecido com o movimento de rotação. Mesmo nos nossos dias – em que se conhece a lei de gravitação –, quando vemos pessoas relativamente esclarecidas não perceberem esse fenômeno, como nos surpreendermos de que homens das primeiras idades não o tenham sequer suspeitado?

Portanto, para eles a Terra era uma superfície plana e circular, qual uma mó de moinho, estendendo-se a perder de vista na direção horizontal. Daí a expressão ainda em uso “ir ao fim do mundo”. Desconheciam os seus limites, a espessura, o interior, a face inferior, o que lhe ficava por baixo49.

49 ―A mitologia hindu ensinava que, ao entardecer, o Sol se despojava de sua luz e atravessava o céu durante a noite com uma face obscura. A mitologia grega figurava puxado por quatro cavalos o carro de Apolo. Anaximandro de Mileto, ao que refere Plutarco, sustentava que o sol era um carro cheio de fogo muito vivo, que se escapava por uma abertura circular. Epicuro, segundo uns, teria emitido a opinião de que o Sol se acendia pela manha e se apagava à noite nas águas do oceano; segundo outros, ele considerava esse 63 – A GÊNESE

astro uma pedra-pomes aquecida até à incandescência. Anaxágoras o tomava por um ferro esbraseado, do tamanho do Peloponeso. Coisa estranha! os antigos eram tão invencivelmente induzidos a considerar real a grandeza aparente desse astro, que perseguiram o filósofo temerário por haver atribuído aquele volume ao facho do dia, fazendo-se necessária toda a autoridade de Péricles para salvá-lo de uma condenação à morte e para que essa pena fosse comutada na de exílio‖ (Flammarion, ESTUDOS E LEITURAS SOBRE A ASTRONOMIA, pág. 6).

Diante de tais ideias, emitidas no quinto século antes do Cristo, ao tempo da maior prosperidade da Grécia, não devem causar espanto aquelas que os homens das primeiras idades faziam sobre o sistema do mundo.

50 Abóboda: espécie de teto curvilíneo – N. D.

3. Por se mostrar sob forma côncava, o céu da crença comum era tido como uma abóbada50 real, cujas bordas inferiores repousavam na Terra e lhe marcavam os confins, vasta cúpula cuja capacidade o ar enchia completamente. Sem nenhuma noção do espaço infinito e incapazes mesmo de o conceberem, os homens imaginavam que essa abóbada era constituída de matéria sólida, donde vem a denominação de firmamento que lhe foi dada e que sobreviveu à crença, significando: firme, resistente (do latim firmamentum, derivado de firmus e do grego herma, hermatos, firme, sustentáculo, suporte, ponto de apoio).

4. As estrelas – cuja natureza não podiam suspeitar – eram simplesmente pontos luminosos, de volumes diversos, engastados na abóbada, como lâmpadas suspensas, dispostas sobre uma única superfície e, por conseguinte, todas à mesma distância da Terra, tal como as que vemos no interior de certas cúpulas, pintadas de azul, figurando a do céu.

Se bem hoje sejam outras as ideias, o uso das expressões antigas se conservou. Ainda se diz, por comparação: “a abóbada estrelada”, “sob a cúpula do céu”.

5. Igualmente desconhecida era então a formação das nuvens pela evaporação das águas da Terra. A ninguém podia vir a ideia de que a chuva que cai do céu tivesse origem na Terra, donde ninguém a via subir. Daí a crença na existência de águas superiores e de águas inferiores, de fontes celestes e de fontes terrestres, de reservatórios colocados nas altas regiões, suposição que concordava perfeitamente com a ideia de uma abóbada sólida, capaz de sustentá-los. As águas superiores, escapando-se pelas frestas da abóbada, caíam em chuva e, conforme fossem mais ou menos largas as frestas, a chuva era branda, torrencial e diluviana.

6. A ignorância completa do conjunto do Universo e das leis que o regem, da natureza, da constituição e da destinação dos astros – que, aliás, pareciam tão pequenos, comparativamente à Terra – fez necessariamente que esta fosse considerada como a coisa principal, o fim único da criação e os astros como acessórios, exclusivamente criados em intenção dos seus habitantes. Esse preconceito se perpetuou até aos nossos dias, apesar das descobertas da Ciência, que mudaram, para o homem, o aspecto do mundo. Quanta gente ainda acredita que as estrelas são ornamentos do céu, destinados a enfeitar a vista dos habitantes da Terra! 64 – Allan Kardec

7. Porém, não tardou para que se apercebessem do movimento aparente das estrelas, que se deslocam em massa do oriente para o ocidente, despontando ao anoitecer e ocultando-se pela manhã, e conservando suas respectivas posições. Contudo, semelhante observação, durante longo tempo, não teve outra consequência que não fosse a de confirmar a ideia de uma abóbada sólida, a arrastar consigo as estrelas, no seu movimento de rotação. Essas ideias primárias, simplistas, no curso de largos períodos seculares, constituíram o fundo das crenças religiosas e serviram de base a todas as cosmogonias51 antigas.

51 Cosmologia: ramo da Astronomia que estuda a origem, estrutura e evolução do Cosmo (Universo) – N. D.

52 Teogonia: narração do nascimento dos deuses (presente nas religiões politeístas, ou seja, que creem em vários deuses) – N. D.

53 Etimologia: estudo da origem e evolução do significado das palavras – N. D.

54 Geologia: ramo da Ciência que estuda a origem, história, vida e estrutura da Terra – N. D.

8. Mais tarde, pela direção do movimento das estrelas e pelo periódico retorno delas, na mesma ordem, percebeu-se que a abóbada celeste não podia ser apenas a metade de uma esfera posta sobre a Terra, mas uma esfera inteira, oca, em cujo centro se achava a Terra, sempre chata, ou, quando muito, convexa e habitada somente na superfície superior. Já era um progresso.

Mas, qual o suporte da Terra? Seria inútil mencionar todas as suposições ridículas, geradas pela imaginação, desde a dos indianos, que a diziam suportada por quatro elefantes brancos, pousados estes sobre as asas de um imenso abutre. Os mais sensatos confessavam que nada sabiam a respeito.

9. Entretanto, uma opinião geralmente espalhada nas teogonias52 pagãs situava nos lugares baixos, ou, por outra, nas profundezas da Terra, ou debaixo desta, não sabia bem, a morada dos amaldiçoados, chamada inferno, isto é, lugares inferiores, e nos lugares altos, além da região das estrelas, a morada dos bem-aventurados. A palavra inferno se conservou até aos nossos dias, se bem haja perdido a significação etimológica53, desde que a Geologia54 retirou das entranhas da Terra o lugar dos suplícios eternos e a Astronomia demonstrou que no espaço infinito não há baixo nem alto.

10. Sob o céu puro da Caldeia, da Índia e do Egito (berço das mais antigas civilizações), o movimento dos astros foi observado com tanta exatidão, quanto a falta de instrumentos especiais permitia. Primeiramente, notou-se que certas estrelas tinham movimento próprio, independente da mesma, o que não consentia a suposição de que se achassem presas à abóbada. Chamaram-lhes estrelas errantes ou planetas, para distingui-las das estrelas fixas. Calcularam os seus movimentos e os retornos periódicos.

No movimento diurno da esfera estrelada, foi notada a imobilidade da Estrela Polar, em cujo redor as outras descreviam, em vinte e quatro horas, círculos oblíquos paralelos, uns maiores, outros menores, conforme a distância em que se encontravam da estrela central. Foi o primeiro passo para o 65 – A GÊNESE

conhecimento da obliquidade55 do eixo do mundo. Viagens mais longas deram chance para que se observasse a diferença dos aspectos do céu, segundo as latitudes e as estações. A verificação de que a elevação da Estrela Polar acima do horizonte variava com a latitude, abriu caminho para a percepção da redondeza da Terra. Foi assim que, pouco a pouco, chegaram a fazer uma ideia mais exata do sistema do mundo.

55 Obliquidade: o que não é reto, que é torto, que tem curva – N. D.

56 Eclíptica: referente ao plano de órbita da Terra – N. D.

57 Astrolábio: Instrumento em forma esférica ou de círculo graduado, com haste móvel, usado para observar e determinar a altura do Sol e das estrelas e medir a latitude e a longitude do lugar onde se encontra o observador – N. D.

Pelo ano 600 antes de Cristo, Tales de Mileto (Ásia Menor), descobriu que a esfericidade da Terra, a obliquidade da eclíptica56 e a causa dos eclipses.

Um século depois, Pitágoras de Samos, descobre o movimento diurno da Terra, sobre o próprio eixo, seu movimento anual em torno do Sol e incorpora os planetas e os cometas ao sistema solar.

Hiparco de Alexandria (Egito), 160 anos antes de Cristo, inventa o astrolábio57, calcula e prediz os eclipses, observa as manchas do Sol, determina o ano trópico, a duração das revoluções da Lua.

Embora sendo preciosíssimas para o progresso da Ciência, essas descobertas levaram perto de 2.000 anos para se popularizarem. Dispondo então apenas de raros manuscritos para se propagarem, as ideias novas permaneciam como patrimônio de alguns filósofos, que as ensinavam a discípulos privilegiados. As massas – que ninguém cuidava de esclarecer – não tiravam nenhum proveito delas e continuavam a se nutrir das velhas crenças.

11. Cerca do ano 140 da era cristã, Ptolomeu – um dos homens mais ilustres da Escola de Alexandria –, combinando suas próprias ideias com as crenças vulgares e com algumas das mais recentes descobertas astronômicas, compôs um sistema que se pode qualificar de misto, que traz o seu nome e que, por perto de quinze séculos, foi o único que o mundo civilizado adotou.

Segundo o sistema de Ptolomeu, a Terra é uma esfera posta no centro do Universo e composta de quatro elementos: terra, água, ar e fogo. Essa a primeira região, dita elementar. A segunda região, dita etérea, compreendia onze céus, ou esferas concêntricas, a girar em torno da Terra, a saber: o céu da Lua, os de Mercúrio, de Vênus, do Sol, de Marte, de Júpiter, de Saturno, das estrelas fixas, do primeiro cristalino, esfera sólida transparente; do segundo cristalino e, finalmente, do primeiro móvel, que dava movimento a todos os céus inferiores e os obrigava a fazer uma revolução em vinte e quatro horas. Para além dos onze céus estava o Empíreo (habitação dos bem-aventurados), denominação tirada do grego pyr ou pur, que significa fogo, porque se acreditava que essa região resplandecia de luz, como o fogo.

A crença em muitos céus superpostos prevaleceu por longo tempo, cujo número, entretanto, variava. O sétimo era geralmente tido como o mais elevado, donde a expressão “ser arrebatado ao sétimo céu”. São Paulo disse que havia sito elevado ao terceiro céu. 66 – Allan Kardec

Fora o movimento comum, segundo Ptolomeu, os astros tinham movimentos próprios, mais ou menos dilatados, conforme a distância em que se achavam do centro. As estrelas fixas faziam uma revolução em 25.816 anos, avaliação esta que denota conhecimento da precessão dos equinócios58, que se realiza em 25.868 anos.

58 Equinócios: momento em que o Sol, em seu movimento anual aparente, corta o equador celeste, fazendo com que o dia e a noite tenham igual duração – N. D.

59 Depois de Galileu, os astrônomos descobriram mais oito; são conhecidos atualmente, portanto, 12 satélites de Júpiter (4 deles com movimento retrógrado) – Nota da Editora, para a 16ª edição, de 1973.

12. No começo do século dezesseis, Copérnico (célebre astrônomo, nascido em Thorn (Prússia), no ano de 1472 e morto no de 1543) reconsiderou as idéias de Pitágoras e concebeu um sistema que, confirmado todos os dias por novas observações, teve acolhimento favorável e não tardou a desbancar o de Ptolomeu. Segundo o sistema de Copérnico, o Sol está no centro e ao seu redor os astros descrevem órbitas circulares, sendo a Lua um satélite da Terra.

Decorrido um século, em 1609, Galileu (natural de Florença) inventa o telescópio; em 1610, descobre os quatro59 satélites de Júpiter e lhe calcula as revoluções; reconhece que os planetas não têm luz própria como as estrelas, mas que são iluminados pelo Sol; que são esferas semelhantes à Terra; observa-lhes as fases e determina o tempo que duram as rotações deles em torno de seus eixos, oferecendo assim, por provas materiais, sanção definitiva ao sistema de Copérnico.

Ruiu então a construção dos céus superpostos; reconheceu-se que os planetas são mundos semelhantes à Terra e, sem dúvida, habitados, como esta; que as estrelas são inumeráveis sóis, prováveis centros de outros tantos sistemas planetários, sendo o próprio Sol reconhecido como uma estrela, centro de um turbilhão de planetas que se lhe acham sujeitos.

As estrelas deixaram de estar confinadas numa zona da esfera celeste, para estarem irregularmente espalhadas pelo espaço sem limites, encontrando-se a gigantescas distâncias umas das outras as que parecem se tocar, sendo que as menores aparentemente as mais afastadas de nós e as maiores as que nos estão mais perto, porém, ainda assim, a centenas de bilhões de léguas.

Os grupos de estrelas que tomaram o nome de constelações são só aparentes agregados, causados pela distância; suas figuras não passam de efeitos de perspectiva, como formam as que as luzes espalhadas por uma vasta planície, ou as árvores de uma floresta, aos olhos de quem as observa colocado num ponto fixo. Na realidade, tais agrupamentos não existem. Se nós pudéssemos nos transportar para a reunião de dessas constelações, a sua forma se desmancharia na medida em que nos aproximássemos dela, e novos grupos se desenhariam à nossa vista.

Ora, como esses agrupamentos só existem na aparência, o significado que uma supersticiosa crença comum lhe atribui é ilusória e só pode existir na imaginação.

Para se distinguirem as constelações, deram a elas nomes como estes: Leão, Touro, Gêmeos, Virgem, Balança, Capricórnio, Câncer, Órion, Hércules, 67 – A GÊNESE

Grande Ursa ou Carro de David, Pequena Ursa, Lira, etc., e, para representá-las, deram-lhes as formas que esses nomes lembram – fantasiosas em sua maioria e, em nenhum caso, guardando qualquer relação com os grupos de estrelas assim chamados. Pois, seria inútil procurar tais formas no céu.

A crença na influência das constelações – sobretudo das que constituem os doze signos do zodíaco – veio da ideia ligada aos nomes que elas trazem. Se à que se chama leão fosse dada o nome de asno ou de ovelha, certamente teriam lhe dado outra influência.

13. A partir de Copérnico e Galileu, as velhas cosmogonias deixaram de existir para sempre. A Astronomia só podia avançar – e não recuar. A História diz das lutas que esses grandes pensadores tiveram de sustentar contra os preconceitos e, sobretudo, contra o espírito de seita, interessado em manter erros sobre os quais se haviam fundado crenças, supostamente firmadas em bases inabaláveis. Bastou a invenção de um instrumento de óptica para derrubar uma construção de muitos milhares de anos. É claro que nada poderia prevalecer contra uma verdade reconhecida como tal. Graças à Tipografia60, o público iniciado nas novas ideias passou a não se deixar embalar com ilusões e tomou parte na luta. Já não era contra indivíduos que os sustentadores das velhas ideias tinham de combater, mas contra a opinião geral, que esposava a causa da verdade.

60 Sobre a Tipografia Kardec se refere aqui aos meios impressos (jornais e revistas) para a divulgação em massa – N. D.

Quanto o Universo é grande em relação às mesquinhas proporções que nossos pais lhe deram! Quanto é sublime a obra de Deus, desde que a vemos realizar-se conformemente às eternas leis da Natureza! Mas também, quanto tempo, quantos esforços dos pensadores e quantos devotamentos se fizeram necessários para abrir os olhos das criaturas e, afinal, arrancar deles a venda da ignorância!

14. Desde então estava aberto o caminho em que ilustres e numerosos sábios iam entrar, a fim de completarem a obra começada. Na Alemanha, Kepler descobre as famosas leis que lhe conservam o nome e por meio das quais se reconhece que as órbitas que os planetas descrevem não são circulares, mas elipses, um de cujos focos o Sol ocupa. Newton, na Inglaterra, descobre a lei da gravitação universal. Laplace, na França, cria a mecânica celeste. Finalmente, a Astronomia deixa de ser um sistema fundado em conjeturas ou probabilidades e se torna uma ciência assentada nas mais rigorosas bases – as do cálculo e da geometria. Fica assim lançada uma das pedras fundamentais da Gênese, cerca de 3.300 anos depois de Moisés. 68 – Allan Kardec

CAPÍTULO VI61

61 Este capítulo é textualmente extraído de uma série de comunicações ditadas à Sociedade Espírita de Paris, em 1862 e 1863, sob o título ―Estudos uranográficos e assinadas‖, de Galileu. Médium: C. F. Estas são as iniciais do nome de Camilo Flammarion – N. T.

62 Uranografia: ciência que tem por objetivo a descrição do céu; Astronomia, Uranologia – N. D.

63 Sofista: aquele que usa da habilidade na fala para convencer acerca de ideias sem lógica – N. D.

URANOGRAFIA62 GERAL

§ O ESPAÇO E O TEMPO

§ A MATÉRIA

§ AS LEIS E AS FORÇAS

§ A CRIAÇÃO PRIMÁRIA

§ A CRIAÇÃO UNIVERSAL

§ OS SÓIS E OS PLANETAS

§ OS SATÉLITES

§ OS COMETAS

§ A VIA-LÁCTEA

§ AS ESTRELAS FIXAS

§ OS DESERTOS DO ESPAÇO

§ ETERNA SUCESSÃO DOS MUNDOS

§ A VIDA UNIVERSAL

§ DIVERSIDADE DOS MUNDOS

 

O ESPAÇO E O TEMPO

1. Já foram dadas muitas definições de espaço, sendo a principal esta: o espaço é a extensão que separa dois corpos, na qual certos sofistas63 deduziram que onde não haja corpos não haverá espaço. Foi nisto que alguns doutores em teologia se basearam para estabelecer que o espaço necessariamente tem fim, alegando que certo número de corpos finitos não poderiam formar uma série infinita e que, onde acabassem os corpos, igualmente o espaço acabaria.

Também definiram o espaço como sendo o lugar onde os mundos se movem, o vazio onde a matéria atua, etc. Vamos deixar todas essas definições, que nada definem, nos tratados onde repousam!

Espaço é uma dessas palavras que traduzem uma ideia primitiva e inquestionável, evidente por si mesma, e que as diversas definições que se possam dar nada mais fazem do que obscurecê-la. Todos nóssabemos o que é o espaço e eu apenas quero firmar que ele é infinito, a fim de que os nossos 69 – A GÊNESE

estudos posteriores não encontrem uma barreira opondo-se às investigações do nosso olhar.

Ora, digo que o espaço é infinito pela razão de ser impossível imaginarmos um limite qualquer nele e porque, apesar da dificuldade que encontramos para entender o infinito, mais fácil para nós é avançar eternamente pelo espaço em pensamento do que parar num ponto qualquer, depois do qual não mais encontrássemos extensão a percorrer.

Para exemplificarmos a infinidade do espaço – o quanto as nossas limitadas habilidades nos permitam –, suponhamos que, partindo da Terra, perdida no meio do infinito, para um ponto qualquer do Universo, com a velocidade prodigiosa da faísca elétrica (que percorre milhares de léguas por segundo, e que, havendo percorrido milhões de léguas mal tenhamos deixado este globo), nos achamos num lugar de onde apenas o divisamos sob o aspecto de pálida estrela. Passado um instante, seguindo sempre na mesma direção, chegamos a essas estrelas distantes que vocês mal percebem de sua estação terrestre. Daí, não só a Terra nos desaparece inteiramente do olhar nas profundezas do céu, como também o próprio Sol – com todo o seu esplendor – tem se eclipsado pela extensão que dele nos separa. Animados sempre da mesma velocidade do relâmpago, a cada passo que avançamos na extensão, transpomos sistemas de mundos, ilhas de luz etérea, estradas estelíferas, paragens suntuosas onde Deus semeou mundos na mesma abundância com que semeou as plantas nos campos terrenos.

Ora, há apenas poucos minutos que caminhamos e já centenas de milhões de milhões de léguas nos separam da Terra, bilhões de mundos nos passaram sob as vistas e, entretanto, escutem: Na realidade, não avançamos um só passo que seja no Universo!

Se continuarmos durante anos, séculos, milhares de séculos, milhões de períodos cem vezes mais e sempre com a mesma velocidade do relâmpago, igualmente nem um passo teremos avançado, qualquer que seja o lado para onde nos dirijamos e qualquer que seja o ponto para onde nos encaminhemos, a partir desse grãozinho invisível donde saímos e a que chamamos Terra.

Eis aí o que é o espaço!

2. Como a palavra espaço, também tempo é um termo já por si mesmo definido. Dele fazemos uma ideia mais exata, relacionando-o com o todo infinito. O tempo é a sucessão das coisas. Está ligado à eternidade, do mesmo modo que as coisas estão ligadas ao infinito. Suponhamos que estamos na origem do nosso mundo, na época primitiva em que a Terra ainda não se movia sob a divina impulsão; numa palavra: no começo da Gênese. O tempo então ainda não havia saído do misterioso berço da Natureza e ninguém pode dizer em que época de séculos nos achamos, porque a contagem dos séculos ainda não foi posta em movimento.

Mas, silêncio! Soa na sineta eterna a primeira hora de uma Terra isolada, o planeta se move no espaço e desde então temos tarde e manhã. Para lá da Terra, a eternidade permanece impassível e imóvel, embora o tempo 70 – Allan Kardec

marche com relação a muitos outros mundos. Para a Terra, o tempo a substitui e durante uma determinada série de gerações contaremos os anos e os séculos.

Vamos nos transportar agora ao último dia desse mundo, à hora em que, curvado sob o peso da velhice, ele se apagará do livro da vida para aí não mais reaparecer. Interrompe-se então a sucessão dos eventos; cessam os movimentos terrestres que mediam o tempo e o tempo acaba com eles.

Esta simples exposição das coisas que dão nascimento ao tempo, que o alimentam e deixam que ele se extinga, basta para mostrar que, visto do ponto em que tivemos de nos colocar para os nossos estudos, o tempo é uma gota d’água que cai da nuvem no mar e cuja queda é medida.

Tantos mundos na vasta amplidão, quantos tempos diversos e incompatíveis. Fora dos mundos, somente a eternidade substitui essas rápidas sucessões e enche tranquilamente da sua luz imóvel a imensidade dos céus. As duas grandes propriedades da natureza universal são: imensidade e eternidade sem limites.

O olhar do observador – que atravessa sem jamais encontrar o que o detenha, as incomensuráveis distâncias do espaço – e o do geólogo – que volta além dos limites das idades, ou que desce às profundezas da eternidade de fauces escancaradas, onde ambos um dia se perderão – atuam em concordância, cada um na sua direção, para adquirir esta dupla noção do infinito: extensão e duração.

Dentro desta ordem de ideias, será fácil para compreendermos que, sendo o tempo apenas a relação das coisas transitórias e dependendo unicamente das coisas que se medem, se tomássemos os séculos terrestres por unidade e os empilhássemos aos milheiros, para formar um número colossal, esse número nunca representaria mais que um ponto na eternidade, do mesmo modo que milhares de léguas adicionadas a milhares de léguas não dão mais que um ponto na extensão.

Assim, por exemplo, estando os séculos fora da vida etérea da alma, poderíamos escrever um número tão longo quanto o equador terrestre e nos supor envelhecidos desse número de séculos, sem que na realidade nossa alma conte um dia a mais. E juntando, a esse número indefinível de séculos, uma série de números semelhantes, longa como daqui ao Sol, ou ainda mais consideráveis, se imaginássemos viver durante uma sucessão prodigiosa de períodos seculares representados pela adição de tais números, quando chegássemos ao fim, o inconcebível amontoado de séculos que nos passaria sobre a cabeça seria como se não existisse: diante de nós estaria sempre toda a eternidade.

O tempo é apenas uma medida relativa da sucessão das coisas transitórias; a eternidade não é suscetível de medida alguma, do ponto de vista da duração; para ela, não há começo, nem fim: tudo é presente.

Se séculos de séculos são menos que um segundo, relativamente à eternidade, que vem a ser a duração da vida humana?! 71 – A GÊNESE

A MATÉRIA

3. À primeira vista, não há o que pareça tão profundamente variado, nem tão essencialmente distinto, como as diversas substâncias que compõem o mundo. Entre os objetos que a Arte ou a Natureza nos fazem passar diariamente ante o olhar, haverá duas que revelem perfeita identidade, ou, sequer, igualdade de composição? Quanta dessemelhança, sob os aspectos da solidez, da compressibilidade, do peso e das múltiplas propriedades dos corpos, entre os gases atmosféricos e um filete de ouro, entre a molécula aquosa da nuvem e a do mineral que forma a carcaça óssea do globo! Que diversidade entre o tecido químico das variadas plantas que adornam o reino vegetal e o dos representantes não menos numerosos da animalidade na Terra!

Entretanto, podemos estabelecer como princípio absoluto que todas as substâncias (conhecidas e desconhecidas), por mais desiguais que pareçam – seja do ponto de vista da constituição íntima, seja pela ótica de suas ações recíprocas – são, de fato, apenas modos diversos de como a matéria se apresenta; variedades em que ela se transforma sob a direção das forças inumeráveis que a governam.

4. A Química – que teve progressos tão rápidos depois da minha época –, com a qual seus próprios adeptos ainda a relegavam para o domínio secreto da magia; ciência que se pode considerar, com justiça, filha do século da observação e baseada unicamente, de maneira bem mais sólida do que suas irmãs mais velhas, no método experimental; a Química, digo, destituiu os quatro elementos primitivos64 que os antigos concordaram em reconhecer na Natureza; mostrou que o elemento terrestre mais não é do que a combinação de diversas substâncias variadas ao infinito; que o ar e a água são igualmente decomponíveis e produtos de certo número de equivalentes de gás; que o fogo, longe de ser também um elemento principal, é apenas um estado da matéria, resultante do movimento universal a que esta se acha submetida e de uma combustão sensível ou latente.

64 Quatro elementos primitivos: certos filósofos antigos acreditavam que tudo no Universo era constituído basicamente de terra, água, fogo e ar – N. D.

65 Os principais corpos simples são: entre os não-metálicos, o oxigênio, o hidrogênio, o azoto, o cloro, o carbono, o fósforo, o enxofre, o iodo; entre os metálicos, o ouro, a prata, a platina, o mercúrio, o chumbo, o estanho, o zinco, o ferro, o cobre, o arsênico, o sódio, o potássio, o cálcio, o alumínio, etc.

Em compensação, fez surgir considerável número de princípios, até então desconhecidos, que lhe pareceram formar por determinadas combinações as diversas substâncias, os diversos corpos que ela estudou e que atuam simultaneamente, segundo certas leis e em certas proporções, nos trabalhos que se realizam dentro do grande laboratório da Natureza. Deu a esses princípios o nome de corpos simples, indicando de tal modo que os considera primitivos e indivisíveis e que até hoje nenhuma operação pode reduzi-los a frações relativamente mais simples do que eles próprios65.

5. Mas, onde param os exames do homem, mesmo ajudados pelos mais 72 – Allan Kardec

impressionantes sentidos artificiais, prossegue a obra da Natureza; onde o comum toma a aparência como realidade, onde o prático levanta o véu e percebe o começo das coisas, o olhar daquele que pode apreender o modo de agir da Natureza apenas vê, nos materiais constitutivos do mundo, a matéria cósmica primitiva, simples e unificada, diversificada em certas regiões na época do aparecimento destas, repartida em corpos solidários entre si, enquanto têm vida, e que um dia se desmembram, por efeitos da decomposição no receptáculo da extensão.

6. Há questões que nós mesmos, Espíritos amantes da Ciência, não podemos aprofundar e sobre as quais só poderemos emitir opiniões pessoais, mais ou menos hipotéticas. Sobre essas questões me calarei, ou justificarei a minha maneira de ver. Aquela com que nos ocupamos, porém, não pertence a esse número. Portanto, aqueles que fossem tentados a enxergar nas minhas palavras unicamente uma teoria ousada, direi: se for possível, abracem com olhar investigador a multiplicidade das operações da Natureza e reconheçam que se não admitirmos a unidade da matéria, impossível será explicar não os sóis e as esferas, mas, sem ir tão longe, a germinação de uma semente na terra, ou a produção dum inseto.

7. Se observarmos tão grande diversidade na matéria, é porque, sendo em número ilimitado as forças que têm presidido às suas transformações e as condições em que estas se produziram, também as várias combinações da matéria não podiam deixar de ser ilimitadas.

Logo, a substância quer que se considere que pertença aos fluidos propriamente ditos, isto é, aos corpos imponderáveis, quer que revista os tipos e as propriedades ordinárias da matéria, não há, em todo o Universo, senão uma única substância primitiva; o cosmo, ou matéria cósmica dos uranógrafos.

AS LEIS E AS FORÇAS

8. Se um desses seres desconhecidos que consomem a sua rápida existência no fundo das tenebrosas regiões do oceano; se um desses poligástricos66, uma dessas nereidas — miseráveis animais minúsculos que da Natureza só conhecem os peixes ictiófagos e as florestas submarinas — recebesse de repente o dom da inteligência, a faculdade de estudar o seu mundo e de basear suas apreciações num raciocínio conjetural extensivo à universalidade das coisas, que ideia faria da natureza viva que se desenvolve no meio por ele habitado e do mundo terrestre que escapa ao campo de suas observações?

66 Poligástrico: que possui vários estômagos – N. D.

Agora, por efeito maravilhoso do poder da sua nova faculdade, se esse mesmo ser chegasse a se elevar, acima das suas trevas eternas, a galgar a 73 – A GÊNESE

superfície do mar, não distante das margens opulentas de uma ilha de esplêndida vegetação, banhada pelo Sol ardente, dispensador de calor benéfico, que juízo faria ele das suas antecipadas teorias sobre a criação universal? Não baniria a elas de pronto, substituindo-as por uma apreciação mais ampla, relativamente tão incompleta quanto a primeira? Ó homens, assim é a imagem da sua ciência toda especulativa67.

67 Tal também a situação dos negadores do mundo dos Espíritos, quando, após se haverem despojado do envoltório carnal, contemplam, desdobrados às suas vistas, os horizontes desse mundo. Compreendem, então, o quanto as teorias (com que pretendiam tudo explicar por meio exclusivamente da matéria) eram ocas. Contudo, esses horizontes ainda lhes escondem mistérios que só posteriormente lhes serão desvendados, à medida que, depurando-se, eles se elevam. Porém, desde os seus primeiros momentos no outro mundo, veem-se forçados a reconhecer a própria cegueira e o quanto estavam longe da verdade.

68 Ligamos tudo ao que conhecemos e do que os nossos sentidos não captam só compreendemos o que o cego de nascença compreende acerca dos efeitos da luz e da utilidade dos olhos. Pois então, é possível que noutros meios o fluido cósmico possua propriedades que seja suscetível de combinações de que não fazemos nenhuma ideia, produza efeitos apropriados a necessidades que desconhecemos, dando lugar a percepções novas ou a outros modos de percepção. Não compreendemos, por exemplo, que se possa ver sem os olhos do corpo e sem a luz. Quem nos diz, porém, que não existam outros meios, fora a luz, aos quais são adequados organismos especiais? Temos um exemplo disso na vista sonambúlica – que nem a distância, nem os obstáculos materiais e nem a obscuridade detêm. Suponhamos que, num mundo qualquer, os seres sejam normalmente o que só excepcionalmente o são os nossos sonâmbulos; eles, sem precisarem da nossa luz, nem dos nossos olhos, verão o que não podemos ver. O mesmo se dá com todas as outras sensações. As condições de vitalidade e de perceptibilidade, as sensações e as necessidades variam de conformidade com os meios.

9. Pois, vindo tratar aqui da questão das leis e das forças que regem o Universo, eu, que como vocês, apenas sou um ser relativamente ignorante, em comparação da ciência real, apesar da aparente superioridade que, com relação aos meus irmãos da Terra, me advém da possibilidade de estudar problemas naturais que lhes são interditados na posição em que eles se encontram como gente humilde, trago por único objetivo lhes dar uma noção geral das leis universais, sem explicar pormenorizadamente o modo de ação e a natureza das forças especiais que lhes são dependentes.

10. Há um fluido etéreo que enche o espaço e penetra os corpos. Esse fluido é o éter ou matéria cósmica primitiva, geradora do mundo e dos seres. As forças que presidiram às metamorfoses da matéria e as leis imutáveis e necessárias que regem o mundo pertencem a essa matéria. Essas múltiplas forças – indefinidamente variadas segundo as combinações da matéria, localizadas segundo as massas, diversificadas em seus modos de ação, segundo as circunstâncias e os meios – são conhecidas na Terra sob os nomes de gravidade, coesão, afinidade, atração, magnetismo, eletricidade ativa. Os movimentos vibratórios do agente são conhecidos sob os nomes de som, calor, luz, etc. Em outros mundos, elas se apresentam sob outros aspectos, revelam outras características desconhecidas na Terra e, na imensa amplidão dos céus, forças infinitas se têm desenvolvido numa escala inimaginável, de grandeza tal que somos tão incapazes de avaliar, como o é o crustáceo, no fundo do oceano, para apreender a universalidade dos fenômenos terrestres68.

Ora, assim como só há uma substância simples – originária, geradora de todos os corpos, mas diversificada em suas combinações –, também todas 74 – Allan Kardec

essas forças dependem de uma lei universal diversificada em seus efeitos e que, pelos desígnios eternos, foi soberanamente imposta à criação, para lhe imprimir harmonia e estabilidade.

11. A Natureza jamais se encontra em oposição a si mesma. A divisa do brasão do Universo só é uma: unidade-variedade. Voltando à escala dos mundos, encontramos unidade de harmonia e de criação, ao mesmo tempo em que uma variedade infinita no imenso jardim de estrelas. Percorrendo os degraus da vida – desde o último dos seres até Deus –, fica evidente a grande lei de continuidade. Considerando as forças em si mesmas, pode-se formar com elas uma série, em que o resultado é a lei universal, confundindo-se com a geradora.

A humanidade não pode apreciar esta lei em toda a sua extensão, porque as forças que a representam no campo das suas observações são restritas e limitadas. Entretanto, a gravitação e a eletricidade podem ser consideradas como uma larga aplicação da lei primordial, que impera para lá dos céus.

Assim como a criação, todas essas forças são universais e eternas — explicaremos este termo. Como pertencem ao fluido cósmico, elas atuam necessariamente em tudo e em toda parte, modificando suas ações pela simultaneidade ou pela sucessão de coisas – predominando aqui, apagando-se ali, fartas e ativas em certos pontos, adormecidas ou ocultas noutros, mas, afinal, preparando, dirigindo, conservando e destruindo os mundos em seus diversos períodos de vida, governando os maravilhosos trabalhos da Natureza, onde quer que eles se executem, assegurando para sempre o eterno esplendor da criação.

A CRIAÇÃO PRIMÁRIA

12. Depois de termos considerado o Universo sob os pontos de vista gerais da sua composição, das suas leis e das suas propriedades, podemos estender os nossos estudos ao modo de formação que deu origem aos mundos e aos seres. Desceremos, em seguida, à criação da Terra, em particular, e ao seu estado atual na universalidade das coisas e daí, tomando esse globo por ponto de partida e por unidade relativa, procederemos aos nossos estudos planetários e siderais.

13. Se bem compreendemos a relação, ou, antes, a oposição entre a eternidade e o tempo, se nos familiarizamos com a ideia de que o tempo não é mais do que uma medida relativa da sucessão das coisas transitórias, ao passo que a eternidade é essencialmente una, imóvel e permanente, insuscetível de qualquer medida, do ponto de vista da duração, compreenderemos que não há começo e nem fim para ela.

Doutro lado, se fazemos ideia exata – embora, necessariamente, muito fraca – da infinidade do poder divino, compreenderemos como é possível que o Universo tenha existido sempre e sempre exista. Desde que Deus existiu, suas 75 – A GÊNESE

perfeições eternas falaram. Antes que houvessem nascido os tempos, a eternidade incomensurável recebeu a palavra divina e fecundou o espaço, eterno como ela.

14. Existindo desde toda a eternidade, Deus criou por sua natureza desde toda eternidade e não poderia ser de outro modo, visto que, por mais distante que seja a época a que recuemos os supostos limites da criação, pela imaginação, haverá sempre uma eternidade além desse limite – pensem bem nesta ideia –, uma eternidade durante a qual as divinas hipóstases, as vontades infinitas teriam permanecido sepultadas em sonolência muda, inativa e infecunda, uma eternidade de morte aparente para o Pai eterno que dá vida aos seres; de mutismo indiferente para o Verbo que os governa; de esterilidade fria e egoísta para o Espírito de amor e vivificação.

Compreendamos melhor a grandeza da ação divina e a sua perpetuidade sob a mão do Ser absoluto! Deus é o Sol dos seres, é a Luz do mundo. Ora, a aparição do Sol dá nascimento instantâneo a ondas de luz que se vão espalhando por todos os lados, na extensão. Do mesmo modo, o Universo, nascido do Eterno, remonta aos períodos inimagináveis do infinito de duração, ao “Faça-se a luz!” do início.

15. Logo, o começo absoluto das coisas tem origem em Deus. As sucessivas aparições delas no domínio da existência constituem a ordem da criação perpétua.

Que mortal poderia dizer das magnificências desconhecidas e soberbamente veladas sob a noite das idades que se desdobraram nesses tempos antigos, em que nenhuma das maravilhas do Universo atual existia; nessa época primitiva em que, tendo-se feito ouvir a voz do Senhor, os materiais que no futuro haviam de se agregar por si mesmos e simetricamente, para formar o templo da Natureza, se encontraram de súbito no seio dos vácuos infinitos; quando aquela voz misteriosa, que toda criatura venera e estima como a de uma mãe, produziu notas harmoniosamente variadas, para irem vibrar juntas e modular o concerto dos céus imensos!

O mundo, no seu ventre, não se apresentou claro na sua virilidade e na plenitude da sua vida, não. O poder criador nunca se contradiz e, como todas as coisas, o Universo nasceu criança. Revestido das leis mencionadas acima e da impulsão inicial inerente à sua formação mesma, a matéria cósmica primitiva fez que sucessivamente nascessem turbilhões, aglomerações desse fluido difuso, amontoados de matéria nebulosa que se cindiram por si próprios e se modificaram ao infinito para gerar, nas regiões incomensuráveis da amplidão, diversos centros de criações simultâneas ou sucessivas.

Em virtude das forças que predominaram sobre um ou sobre outro deles e das circunstâncias posteriores que presidiram aos seus desenvolvimentos, esses centros primitivos se tornaram focos de uma vida especial: uns, menos disseminados no espaço e mais ricos em princípios e em forças atuantes, começaram desde logo a sua particular vida astral; os outros, 76 – Allan Kardec

ocupando ilimitada extensão, cresceram com lentidão extrema, ou de novo se dividiram em outros centros secundários.

16. Transportando-nos a alguns milhões de séculos somente, acima da época atual, verificamos que a nossa Terra ainda não existe, que mesmo o nosso sistema solar ainda não começou as evoluções da vida planetária; mas, que, entretanto, já esplêndidos sóis iluminam o éter; já planetas habitados dão vida e existência a uma multidão de seres, nossos predecessores na carreira humana, que as produções suntuosas de uma natureza desconhecida e os maravilhosos fenômenos do céu desdobram, sob outros olhares, os quadros da imensa criação. Que digo! Já deixaram de existir esplendores que muito antes fizeram palpitar o coração de outros mortais, sob o pensamento da potência infinita! E nós, pobres seres pequeninos, que viemos após uma eternidade de vida, nós nos cremos contemporâneos da criação!

Ainda uma vez; vamos compreender melhor a Natureza. Saibamos que atrás de nós, como à nossa frente, está a eternidade, que o espaço é teatro de inimaginável sucessão e simultaneidade de criações. Tais nebulosas, que mal percebemos nos mais longínquos pontos do céu, são aglomerados de sóis em vias de formação; tais outras são vias-lácteas de mundos habitados; outras, finalmente, sedes de catástrofes e de destruição. Saibamos que, assim como estamos colocados no meio de uma infinidade de mundos, também estamos no meio de uma dupla infinidade de durações, anteriores e seguintes; que a criação universal não se acha restrita a nós, que não nos é lícito aplicar essa expressão à formação isolada do nosso pequenino globo.

A CRIAÇÃO UNIVERSAL

17. Após haver retornado em direção à fonte oculta de onde nascem os mundos, como as emanam de um rio d’água – retornado tanto quanto a nossa fraqueza permitia –, vamos analisar a marcha das criações sucessivas e dos seus desenvolvimentos seriais.

A matéria cósmica primitiva continha os elementos materiais, fluídicos e vitais de todos os universos que ostentam suas magnificências diante da eternidade. Ela é a mãe inesgotável de todas as coisas, a primeira avó e, sobretudo, a eterna geratriz. Evidentemente que essa substância donde as esferas siderais provêm não desapareceu; essa potência não morreu, pois que ainda, incessantemente, dá à luz novas criações e incessantemente recebe os princípios reconstituídos dos mundos que se apagam do livro eterno.

A substância etérea69, mais ou menos rarefeita, que se espalha pelos espaços entre planetas; esse fluido cósmico que enche o mundo, mais ou menos sutil, nas regiões imensas, repletas de aglomerações de estrelas; mais ou menos condensado onde o céu astral ainda não brilha; mais ou menos modificado por

69 Etérea: relativo de éter, que é matéria de uma essência espiritual, muito mais fina que a matéria atualmente alcançada pela observação humana – N. D. 77 – A GÊNESE

diversas combinações, de acordo com as localidades da extensão, nada mais é do que a substância primitiva onde residem as forças universais, donde a Natureza há tirado todas as coisas70.

70 Se perguntásseis qual o princípio dessas forças e como esse princípio pode estar na substância mesma que o produz, responderíamos que a mecânica nos oferece numerosos exemplos desse fato. A elasticidade, que faz com que uma mola se distenda, não está na própria mola e não depende do modo de agregação das moléculas? O corpo que obedece à força centrífuga recebe a sua impulsão do movimento primitivo que lhe foi impresso.

18. Esse fluido penetra os corpos como um oceano imenso. É nele que reside o princípio vital que dá origem à vida dos seres e a perpetua em cada globo, conforme à condição deste mundo, princípio que se conserva adormecido, em estado latente, onde a voz de um ser não o chama. Toda criatura, mineral, vegetal, animal ou qualquer outra – porque há muitos outros reinos naturais que vocês nem sequer suspeitam – adaptar as condições de sua existência e de sua duração em virtude desse princípio vital e universal,.

As moléculas do mineral têm certa soma dessa vida do mesmo modo que a semente do embrião, e, como no organismo, se grupam em figuras semelhantes que formam os indivíduos.

É muito importante compreendermos a noção de que a matéria cósmica primitiva se achava revestida, não só das leis que asseguram a estabilidade dos mundos, como também do universal princípio vital que forma gerações espontâneas em cada mundo, à medida que se apresentam as condições da existência sucessiva dos seres e quando soa a hora do aparecimento dos filhos da vida, durante o período criador.

Efetua-se assim a criação universal. Portanto, é exato dizermos que Deus tem criado sempre, cria incessantemente e nunca deixará de criar, pois as operações da Natureza são a expressão da vontade divina.

19. Até aqui, porém, temos guardado silêncio sobre o mundo espiritual, que também faz parte da criação e cumpre seus destinos conforme as majestosas determinações do Senhor.

Entretanto, acerca do modo da criação dos Espíritos, isso não posso ministrar mais que um ensino muito limitado, em virtude da minha própria ignorância e também porque tenho ainda de me calar no que se refere a certas questões, se bem já me tenha sido permitido aprofundá-las.

Aos que desejem religiosamente conhecer e se mostrem humildes perante Deus, direi o seguinte, todavia, rogando a todos que não usem minhas palavras para nenhuma teoria prematura: o Espírito não chega a receber a iluminação divina – que lhe dá, simultaneamente com o livre-arbítrio e a consciência, a noção de seus altos destinos – sem haver passado pela série divinamente fatal dos seres inferiores, entre os quais a obra da sua individualização se elabora lentamente. Somente a partir do dia em que o Senhor lhe imprime na fronte o seu venerável tipo, o Espírito toma lugar no seio das humanidades.

Novamente peço: não construam sobre as minhas palavras os seus 78 – Allan Kardec

raciocínios, tão tristemente ilustres na história da Metafísica. Eu preferiria mil vezes calar-me sobre tão elevadas questões – que estão acima das nossas meditações ordinárias – a lhes expor a deformar o sentido de meu ensino e a lançar a vocês, por culpa minha, nos incompreensíveis labirintos do deísmo71 ou do fatalismo.

71 Deísmo: teoria que considera a razão como a única via capaz de nos assegurar da existência de Deus, rejeitando, para tal fim, o ensinamento ou a prática de qualquer religião organizada – N. D.

72 Equatorial: que está em paralelo com a linha do equador, que é o eixo horizontal da Terra, dividindo o Globo em Hemisfério Norte e Hemisfério Sul – N. D.

OS SÓIS E OS PLANETAS

20. Sucedeu que, num ponto do Universo, perdido entre as miríades de mundos, a matéria cósmica se condensou sob a forma de imensa nebulosa, animada esta das leis universais que regem a matéria. Em virtude dessas leis, notadamente da força molecular de atração, ela tomou a forma de um esferoide – a única que pode assumir uma massa de matéria isolada no espaço.

O movimento circular produzido pela gravitação – rigorosamente igual, de todas as zonas moleculares em direção ao centro – logo modificou a esfera primitiva, a fim de conduzi-la à forma lenticular, de movimento em movimento (falamos do conjunto da nebulosa).

21. Novas forças surgiram em consequência desse movimento de rotação: a força centrípeta (que tende a reunir todas as partes rumo ao eixo da rotação) e a força centrífuga (que tende a afastar todas as partes a partir do centro). Ora, o movimento em aceleração à medida que a nebulosa se condensa, e aumentando o seu raio à medida que ela se aproxima da forma lenticular, a força centrífuga (incessantemente desenvolvida por essas duas causas) predominou de pronto sobre a atração central.

Assim como um movimento bastante rápido da arma que dispara o projétil para bem longe, também a predominância da força centrífuga destacou o circo equatorial72 da nebulosa e desse anel se formou uma nova massa, isolada da primeira, mas, todavia, submetida ao seu império. Aquela massa conservou o seu movimento equatorial que, modificado, se tornou seu movimento de translação em torno do astro solar. Ao demais, o seu novo estado lhe dá um movimento de rotação em torno do próprio centro.

22. A nebulosa geratriz – que deu origem a esse novo mundo – condensou-se e retomou a forma esférica; mas, como o calor primitivo (desenvolvido por seus diversos movimentos) só se abrandasse com extrema lentidão, o fenômeno que acabamos de descrever se reproduzirá muitas vezes e durante longo período, enquanto a nebulosa não tenha se tornado bastante sólida para oferecer resistência eficaz às modificações de forma, que o seu movimento de rotação sucessivamente lhe imprime. 79 – A GÊNESE

Então, ela não terá dado nascimento a um só astro, mas a centenas de mundos destacados do foco central, saídos dela pelo modo de formação mencionado acima. Ora, cada um de seus mundos – revestido, como o mundo primitivo, das forças naturais que presidem à criação dos universos – gerará sucessivamente novos globos que desde então gravitarão em seu torno, como ele, juntamente com seus irmãos, gravita em torno do foco que lhes deu existência e vida. Cada um desses mundos será um Sol, centro de um turbilhão de planetas sucessivamente destacados do seu equador. Esses planetas receberão uma vida especial, particular, embora dependente do astro que os gerou.

23. Assim, os planetas são formados de massas de matéria condensada, porém, ainda não solidificada, destacadas da massa central pela ação de força centrífuga e que tomam a forma de esfera, mais ou menos elíptica, em virtude das leis do movimento, conforme o grau de fluidez que conservaram. Um desses planetas será a Terra que, antes de se resfriar e revestir de uma crosta sólida, dará nascimento à Lua, pelo mesmo processo de formação astral a que ela própria deveu a sua existência. Deste ponto em diante, a Terra é inscrita no livro da vida, berço de criaturas cuja fraqueza as asas da divina Providência protege, nova corda colocada na harpa infinita e que, no lugar que ocupa, tem de vibrar no concerto universal dos mundos.

OS SATÉLITES

24. Antes que as massas planetárias houvessem atingido um grau de resfriamento bastante a lhes operar a solidificação, massas menores (verdadeiros glóbulos líquidos) se desprenderam de algumas no plano equatorial – plano em que é maior a força centrífuga – e, por efeito das mesmas leis, adquiriram um movimento de translação em torno do planeta que as gerou, como sucedeu a estes com relação ao astro central que lhes deu origem.

Foi assim que a Terra deu nascimento à Lua (que tem massa menor73), teve que sofrer um resfriamento mais rápido. Ora, as leis e as forças que presidiram ao fato de ela se destacar do equador terreno, e o seu movimento de translação no mesmo plano, agiram de tal sorte que esse mundo, em vez de revestir a forma de esfera, tomou a de um globo ovoide, isto é, a forma alongada de um ovo, com o centro de gravidade fixado na parte inferior.

73 Calcula-se que a Terra seja 3,7 vezes maior que a Lua – N. D.

25. As condições em que se efetuou a desagregação da Lua pouco lhe permitiram afastar-se da Terra e a obrigaram a se conservar eternamente suspensa no seu firmamento, como uma figura ovoide em que as partes mais pesadas formaram a face inferior voltada para a Terra e cujas partes menos densas lhe constituíram o vértice, se com essa palavra se designar a face que, do 80 – Allan Kardec

lado oposto à Terra, se eleva para o céu. É o que faz que esse astro nos apresente sempre a mesma face. Para melhor compreender-se o seu estado geológico, ele pode ser comparado a um globo de cortiça, tendo formada de chumbo a face voltada para a Terra.

Daí, duas naturezas essencialmente diferentes na superfície do mundo lunar: uma, sem qualquer semelhança com o nosso, porque os seus corpos fluidos e etéreos são desconhecidos; a outra, leve em relação à Terra, porque todas as substâncias menos densas se encaminharam para esse hemisfério. A primeira, perpetuamente voltada para a Terra, sem águas e sem atmosfera, a não ser, aqui e ali, nos limites desse hemisfério subterrestre; a outra, rica de fluidos, perpetuamente oposta ao nosso mundo74.

74 Esta teoria da Lua – que é inteiramente nova – explica o motivo por que esse astro apresenta sempre a mesma face para a Terra, que é pela lei da gravitação. Tendo o centro de gravidade num dos pontos de sua superfície, em vez de estar no centro da esfera, e, em consequência disso, sendo atraído para a Terra por uma força maior do que a que atrai as partes mais leves, a Lua pode ser tida como uma dessas figuras chamadas vulgarmente João-paulino, que se levantam constantemente sobre a sua base, ao passo que os planetas, cujo centro de gravidade está a distâncias iguais da superfície, giram regularmente sobre o próprio eixo. Em virtude da sua leveza específica, os fluidos vivificantes, gasosos ou líquidos se encontrariam acumulados no hemisfério superior, perenemente oposto à Terra. O hemisfério inferior, o único que vemos, seria desprovido de tais fluidos e, por isso, impróprio à vida que, entretanto, reinaria no outro. Se, pois, o hemisfério superior é habitado, seus habitantes jamais viram a Terra, a menos que excursionem pelo outro, o que lhes seria impossível, desde que este carece das condições indispensáveis à vitalidade.

Por muito racional e científica que seja essa teoria, como ainda não foi confirmada por nenhuma observação direta, somente pode ser aceita como hipótese e como ideia capaz de servir de base à Ciência. Porém, não podemos deixar de concordar que até ao presente é a única que dá uma explicação satisfatória das particularidades que apresenta o globo lunar.

75 Em 1877, foram descobertos dois satélites de Marte: Fobos e Deimos – Nota da Editora FEB.

26. O número e o estado dos satélites de cada planeta variam de acordo com as condições especiais em que eles se formaram. Alguns não deram origem a nenhum astro secundário, como se verifica com Mercúrio, Vênus e Marte75, ao passo que outros, como a Terra, Júpiter, Saturno, etc., formaram um ou vários desses astros secundários.

27. Além de seus satélites ou luas, o planeta Saturno apresenta o fenômeno especial do anel que, visto de longe, parece cercá-lo de uma como auréola branca. De fato, esse anel é o resultado de uma separação que se operou no equador de Saturno, ainda nos tempos primitivos, do mesmo modo que uma zona equatorial se escapou da Terra para formar o seu satélite. A diferença consiste em que o anel de Saturno se formou, em todas as suas partes, de moléculas homogêneas, provavelmente já em certo estado de condensação, e pode, dessa maneira, continuar o seu movimento de rotação no mesmo sentido e em tempo quase igual ao do que anima o planeta. Se um dos pontos desse anel houvesse ficado mais denso do que outro, uma ou muitas aglomerações de substância se teriam subitamente operado e Saturno contaria muitos satélites a mais. Desde a época da sua formação, esse anel se solidificou, do mesmo modo que os outros corpos planetários. 81 – A GÊNESE

OS COMETAS

28. Os cometas (os astros errantes76) – ainda mais do que os planetas, que conservaram a denominação etimológica – serão os guias que nos ajudarão a transpor os limites do sistema a que a Terra pertence e nos levarão às regiões longínquas da extensão sideral.

76 Astros errantes no sentido de não estarem estáticos e por vagarem fora da nossa órbita – N. D.

77 Apogeu: em astronomia, é o ponto mais afastado em que um satélite (a lua ou um comete) se coloca em relação à Terra – N. D.

Mas, antes de explorarmos os domínios celestes, com o auxílio desses viajantes do Universo, será bom conhecermos o quanto for possível a natureza essencial deles e o papel que lhes cabe na organização planetária.

29. Alguns imaginam o nascimento de mundos nesses astros dotados de cabeleira, que no primitivo caos em que se acham, elaboram as condições de vida e de existência, que tocam em partilha às terras habitadas; outros imaginaram que esses corpos extraordinários eram mundos em estado de destruição e, para muitos, a estranha aparência que os cometas têm foi motivo de apreciações errôneas acerca da natureza deles, isso a tal ponto que não houve – inclusive na astrologia judiciária – quem não os considerasse como anunciadores de desgraças, conforme as determinações providenciais, enviados à Terra, que fica espantada e tremente.

30. A lei de variedade se aplica em tão larga escala nos trabalhos da Natureza, que é de se admirar que os naturalistas, os astrônomos e os filósofos tenham fabricado tantos sistemas para assimilar os cometas aos astros planetários e para somente verem neles astros em graus mais ou menos adiantados de desenvolvimento ou de degeneração. Entretanto, os quadros da Natureza deveriam bastar amplamente para afastar o observador da preocupação de investigar relações inexistentes e deixar aos cometas o papel de astros errantes, que é modesto, porém útil, que servem de exploradores aos impérios solares. Como os corpos celestes de que tratamos são coisa muito diversa dos corpos planetários; não são destinados a servir de habitação para as humanidades – como são os planetas. Vão sucessivamente de sóis em sóis, enriquecendo-se pelo caminho, às vezes de fragmentos planetários reduzidos ao estado de vapor, buscar, nos focos solares, os princípios vivificantes e renovadores que derramam sobre os mundos terrestres (Cap. IX, nº 12).

31. Se acompanhássemos pelo pensamento quando um desses astros se aproxima do nosso pequenino globo, para lhe atravessar a órbita e voltar ao seu apogeu77 (que está situado a uma incalculável distância do Sol), para com ele visitar as províncias siderais, transporíamos a prodigiosa extensão de matéria etérea que separa o Sol das estrelas mais próximas e, observando os movimentos combinados desse astro, que se imaginaríamos estivesse perdido no deserto infinito, ainda aí encontraríamos uma prova eloquente da 82 – Allan Kardec

universalidade das leis da Natureza, que atuam a distâncias que nem a mais criativa imaginação pode conceber.

Aí, a forma elíptica toma a forma parabólica78 e a marcha se torna tão lenta que o cometa não chega a percorrer mais que alguns metros, no mesmo tempo durante o qual, em seu perigeu79, percorria muitos milhares de léguas. Talvez um sol mais poderoso – mais importante do que o que ele acaba de deixar – exerça sobre esse cometa uma atração preponderante e o receba na categoria de seus súditos. Então, na pequenina Terra, as crianças espantadas lhe aguardarão o retorno em vão, conforme haviam calculado ao se basear em observações incompletas. Nesse caso, nós – que acompanhamos o cometa errante (pelo pensamento) a essas regiões desconhecidas – depararemos com uma nação nova, que os olhares terrenos não podem encontrar, inimaginável para os Espíritos que habitam a Terra, inconcebível mesmo para as suas mentes, porque ela será teatro de inexploradas maravilhas.

78 Forma parabólica: forma de uma parábola, de iguais distâncias entre dois pontos dispersos em relação a determinado ponto fixo – N. D.

79 Perigeu: oposto de apogeu, ponto da órbita de um astro (como um cometa) mais próximo da Terra – N. D.

80 Mais de 3 trilhões e 400 bilhões de léguas.

Chegamos ao mundo astral, nesse mundo deslumbrante dos vastos sóis que irradiam pelo espaço infinito e que são as flores brilhantes do magnífico jardim da criação. Lá chegando, apenas saberemos o que é a Terra.

A VIA-LÁCTEA

32. Pelas belas noites estreladas e sem luar, todo mundo tem contemplado essa faixa esbranquiçada que atravessa o céu de uma extremidade a outra e que os antigos chamaram de Via láctea, por motivo da sua aparência leitosa. O olho do telescópio tem longamente explorado esse vasto clarão nos tempos modernos; essa estrada de poeira de ouro, esse regato de leite da mitologia antiga se transformou num vasto campo de inconcebíveis maravilhas. As pesquisas dos observadores conduziram ao conhecimento da sua natureza e revelaram que, ali, onde o olhar errante apenas percebia uma fraca luminosidade, há milhões de sóis mais luminosos e mais importantes do que o que nos clareia a Terra.

33. De fato, a Via Láctea é uma campina pintada de flores solares e planetárias, que brilham em toda a sua enorme extensão. O nosso Sol e todos os corpos que o acompanham fazem parte desse conjunto de globos radiosos que formam a Via Láctea. Porém, apesar das suas proporções gigantescas em comparação à Terra e à grandeza do seu império, o Sol ocupa inapreciável lugar em tão imensa criação. Podemos contar por uma trintena de milhões os sóis que gravitam à sua semelhança nessa imensa região, afastados uns dos outros de mais de cem mil vezes o raio da órbita terrestre80.

34. Por esse cálculo de aproximação podemos julgar a extensão de tal região sideral e da relação que existe entre o nosso sistema planetário e a 83 – A GÊNESE

universalidade dos sistemas que ela contém. Podemos igualmente julgar a pequenez do domínio solar e, de maneira mais precisa, do nada que é a nossa miúda Terra. Que dizer então dos seres que povoam este planeta!

Digo “do nada” porque as nossas determinações se aplicam não só à extensão material, física, dos corpos que estudamos – o que seria pouco– mas, também e, sobretudo, ao estado moral deles como habitação e ao grau que ocupam na eterna hierarquia dos seres. A criação se mostra aí em toda a sua majestade, produzindo e propagando as manifestações da vida e da inteligência em torno do mundo solar e em cada um dos sistemas que o rodeiam por todos os lados.

35. Assim, ficamos conhecendo a posição que o nosso Sol ou a Terra ocupam no mundo das estrelas. Estas considerações ganharão peso maior ainda se refletirmos sobre o estado mesmo da Via Láctea que, na imensidade das criações siderais, não representa mais do que um ponto insensível e inapreciável, vista de longe, porque ela não é mais do que uma nebulosa estelar, entre os milhões das que existem no espaço. Se ela nos parece mais vasta e mais rica do que outras, é pela única razão de que nos cerca e se desenvolve em toda a sua extensão sob os nossos olhares, ao passo que as outras, sumidas nas profundezas insondáveis, mal se deixam entrever.

36. Ora, sabendo que no sistema solar a Terra não é nada, ou quase nada; que este nada é, ou quase nada, na Via Láctea; esta por sua vez, nada, ou quase nada, na universalidade das nebulosas e essa própria universalidade bem pouca coisa dentro do imensurável infinito, começamos a compreender o que é o globo terrestre.

AS ESTRELAS FIXAS

37. As estrelas chamadas “fixas” e que constelam os dois hemisférios do firmamento não se acham totalmente isentas de qualquer atração exterior – como geralmente se supõe. Longe disso: todas elas pertencem a uma mesma aglomeração de astros estelares, aglomeração que não é senão a grande nebulosa de que fazemos parte e cujo plano equatorial, projetado no céu, recebeu o nome de Via Láctea. Todos os sóis que a constituem são solidários; suas múltiplas influências reagem perpetuamente umas sobre as outras e a gravitação universal as agrupa todas numa mesma família.

38. Esses diversos sóis estão na sua maioria como o nosso, cercados de mundos secundários, que eles iluminam e fertilizam por intermédio das mesmas leis que presidem à vida do nosso sistema planetário. Uns como Sírio, são milhares de milhões de vezes mais grandiosos e magnificentes em dimensões e em riquezas do que o nosso Sol e muito mais importante é o papel que desempenham no Universo. Também planetas em muito maior número e muito superiores aos nossos cercam esses sóis. Outros são muito diferentes pelas suas 84 – Allan Kardec

funções astrais. É assim que certo número desses sóis – verdadeiros gêmeos da ordem sideral – são acompanhados de seus irmãos da mesma idade, e formam, no espaço, sistemas binários, aos quais a Natureza concedeu funções inteiramente diversas das atribuições que cabem ao nosso Sol81. Lá, os anos não se medem pelos mesmos períodos, nem os dias pelos mesmos sóis e esses mundos, iluminados por um duplo facho, foram dotados de condições de existência inimagináveis por parte dos que ainda não saíram deste pequenino mundo terrestre.

81 É o que a Astronomia dá o nome de ―estrelas duplas‖. São dois sóis, um dos quais gira em torno do outro, como um planeta em torno do seu sol. Que magnífico espetáculo desfrutam os habitantes dos mundos que formam esses sistemas iluminados por duplo sol! Mas também, o quanto não será diferente as condições de vida neles!

Numa comunicação dada posteriormente, o Espírito Galileu acrescentou: ―Há mesmo sistemas ainda mais complicados, em que diferentes sóis desempenham o papel de satélites, uns com relação a outros. Produzem-se então maravilhosos efeitos de luz para os habitantes dos globos que tais sóis iluminam, tanto mais quanto, apesar da aparente proximidade em que se encontram uns dos outros, mundos habitados podem circular entre eles e receber alternativamente as ondas de luz diversamente coloridas, cuja reunião recompõe a luz branca‖.

Outros astros, sem satélites acompanhante e sem planetas, receberam elementos de sobrevivência de vida melhores do que os conferidos a qualquer dos demais. Na sua imensidade, as leis da Natureza se diversificam e, se a unidade é a grande expressão do Universo, a variedade infinita é igualmente seu eterno atributo.

39. Apesar do espantoso número dessas estrelas e de seus sistemas, apesar das distâncias incomensuráveis que as separam, todas elas pertencem à mesma nebulosa estelar que os mais possantes telescópios mal conseguem atravessar e que as concepções da mais ousada imaginação apenas conseguem avistar, nebulosa que, entretanto, é simplesmente uma unidade na ordem das nebulosas que compõem o mundo astral.

40. As estrelas chamadas fixas não estão imóveis na amplidão. As constelações que se figuraram na abóbada do firmamento não são reais criações simbólicas. A distância delas em relação à Terra e a perspectiva sob a qual se mede, a partir da estação terrena, o Universo, constituem as duas causas dessa dupla ilusão de óptica (ver capítulo V, nº 12).

41. Vimos que a totalidade dos astros que cintilam na cúpula azulada se acha contida numa aglomeração cósmica, numa mesma nebulosa a que chamam Via Láctea. Mas, por todos pertencerem ao mesmo grupo, não se segue que esses astros não estejam todos animados de movimento de translação no espaço, cada um com o seu. Em parte nenhuma existe o repouso absoluto. Eles são regidos pelas leis universais da gravitação e rolam no espaço ilimitado sob a impulsão incessante dessa força imensa. Rolam, não segundo roteiros traçados pelo acaso, mas segundo órbitas fechadas, cujo centro um astro superior ocupa. Para tornar mais compreensíveis as minhas palavras, falarei por meio de um exemplo, de modo especial do seu Sol. 85 – A GÊNESE

42. Em consequência de modernas observações, sabemos que ele não é fixo, nem central, como se acreditava nos primeiros tempos da nova Astronomia; que avança pelo espaço, arrastando consigo o seu vasto sistema de planetas, de satélites e de cometas.

Ora, esta marcha não é fortuita e ele não vai vagando pelos vácuos infinitos a transviar seus filhos e seus súditos, longe das regiões que lhe estão assinadas. Não, sua órbita é determinada e, em concorrência com outros sóis da mesma ordem e rodeados todos de certo número de terras habitadas, ele gravita em torno de um sol central. Seu movimento de gravitação, como o dos sóis seus irmãos, é inapreciável a observações anuais, porque somente grande número de períodos seculares seriam suficientes para marcar um desses anos astrais.

43. O sol central, de que acabamos de falar, também é um globo de segunda ordem em relação a outro ainda mais importante, ao redor do qual ele perpetua uma marcha lenta e compassada, na companhia de outros sóis da mesma ordem.

Poderíamos comprovar esta subordinação sucessiva de sóis a sóis, até sentirmos cansada a imaginação de subir através de tal hierarquia, pois, não nos esqueçamos que, em números redondos, podemos contar na Via Láctea uma trintena de milhões de sóis, subordinados uns aos outros, como rodas gigantescas de uma engrenagem imensa.

44. E esses astros, em números incontáveis, vivem vida solidária. Assim como na organização do seu mundinho terrestre nada se acha isolado, também no incalculável Universo nada está isolado.

De longe, ao olhar investigador do filósofo que pudesse alcançar o quadro que o espaço e o tempo desdobram, esses sistemas de sistemas pareceriam uma poeira de grãos de ouro levantada em turbilhão pelo sopro divino, que faz os mundos siderais voar nos céus, como voam os grãos de areia no lombo do deserto.

Não há imobilidade em parte nenhuma, nem silêncio, nem noite! Então, o grande espetáculo que se desdobraria ante nossos olhos seria a criação real, imensa e cheia da vida etérea, que no seu formidável conjunto o olhar infinito do Criador abrange.

Mas, até aqui, temos falado de uma única nebulosa, que com os milhões de sóis, e os seus milhões de terras habitadas, forma apenas uma ilha no arquipélago infinito – como já dissemos.

OS DESERTOS DO ESPAÇO

45. Sem limites, um inimaginável deserto se estende para lá da aglomeração de estrelas de que vimos tratar e a envolve. Solidões sucedem solidões e incomensuráveis planícies do vácuo se distendem pela amplidão espaço a fora. 86 – Allan Kardec

Os amontoados de matéria cósmica se encontram isolados no espaço como ilhas flutuantes de enormíssimo arquipélago. Se de alguma forma quisermos apreciar a distância enorme que separa o aglomerado de estrelas de que fazemos parte, dos outros aglomerados mais próximos, precisamos saber que essas ilhas estelares se encontram espalhadas e raras no vastíssimo oceano dos céus, e que a extensão que separa umas das outras, é incomparavelmente maior do que as que lhes medem as respectivas dimensões.

Ora, como já vimos, a nebulosa estelar mede em números redondos mil vezes a distância das estrelas mais aproximadas, tomada por unidade essa distância, isto é, alguns cem mil trilhões de léguas. A distância que existe entre elas, sendo muito mais vasta, não poderia ser expressa por números acessíveis à compreensão do nosso espírito. Só a imaginação – em suas concepções mais altas – é capaz de transpor tão fabulosa imensidade, essas solidões mudas e baldas de toda aparência de vida, e de encarar, de certa maneira, a ideia dessa infinidade relativa.

46. Todavia, a visão e o poder infinito do Altíssimo abrangem esse deserto celeste que envolve o nosso universo sideral e que parece estender-se como sendo os afastados confins do nosso mundo astral, que, além desses céus dos nossos céus, desenvolveu a trama da sua criação ilimitada.

47. Com efeito, além de tão vastas solidões, mundos rebrilham em sua magnificência, tanto quanto nas regiões acessíveis às investigações humanas; para lá desses desertos, esplêndidos oásis vagam no éter límpido, que sem cessar, renovam as cenas admiráveis da existência e da vida. Sucedem-se lá os agregados longínquos de substância cósmica, que o profundo olhar do telescópio percebe através das regiões transparentes do nosso céu e a que dais o nome de nebulosas irresolúveis, as quais lhes parecem ligeiras nuvens de poeira branca – perdidas num ponto desconhecido do espaço etéreo. Lá, novos mundos se revelam e se desdobram, cujas condições variadas e diversas das que são peculiares ao seu globo lhes dão uma vida que as concepções humanas não podem imaginar, nem os seus estudos podem comprovar. É lá que em toda a sua plenitude resplandece o poder criador. Àquele que vem das regiões que o seu sistema ocupa, outras leis se deparam em ação e cujas forças regem as manifestações da vida. E os novos caminhos que se apresentam a nós em tão singulares regiões abrem-nos surpreendentes perspectivas82.

82 Em Astronomia, é dado o nome de nebulosas irresolúveis àquelas em cujo seio ainda se não puderam distinguir as estrelas que as compõem. A princípio, foram consideradas acervos de matéria cósmica em vias de condensação para formar mundos; hoje, porém, geralmente se entende que essa aparência é devida ao afastamento e que, com instrumentos bastante poderosos, todas seriam resolúveis.

Uma comparação familiar pode dar ideia – embora muito imperfeita –, das nebulosas resolúveis: são os grupos de centelhas projetadas pelas bombas dos fogos de artifício, no momento de explodirem. Cada uma dessas centelhas figurará uma estrela e o conjunto delas a nebulosa, ou grupo de estrelas reunidas num ponto do espaço e submetidas a uma lei comum de atração e de movimento. Vistas de certa distância, mal se distinguem essas centelhas, tendo o grupo por elas formado a aparência de uma nuvenzinha de fumaça. Esta comparação não seria exata se fossem tratadas de massas de matéria cósmica condensada. 87 – A GÊNESE

A nossa Via Láctea é uma dessas nebulosas. Conta perto de 30 milhões de estrelas ou sóis que ocupam nada menos de algumas centenas de trilhões de léguas de extensão e, entretanto, não é a maior. Suponhamos uma média de 20 planetas habitados circulando em torno de cada sol: teremos 600 milhões de mundos só para o nosso grupo.

Se nos pudéssemos transportar da nossa nebulosa para outra, aí estaríamos como em meio da nossa Via Láctea, porém com um céu estrelado de aspecto inteiramente diverso e este, apesar das suas dimensões colossais, nos pareceria de longe um pequenino floco lenticular perdido no infinito. Mas, antes de atingirmos a nova nebulosa, seríamos iguais a um viajante que deixa uma cidade e percorre vasto país inabitado, antes que chegue a outra cidade. Teríamos transposto incomensuráveis espaços desprovidos de estrelas e de mundos, o que Galileu denominou os desertos do espaço. À medida que avançássemos, veríamos a nossa nebulosa afastar-se atrás de nós, diminuindo de extensão às nossas vistas, ao mesmo tempo em que se apresentaria diante de nós aquela para a qual nos dirigíssemos, cada vez mais distinta, semelhante à massa de centelhas de bomba de fogos de artifício. Transportando-nos pelo pensamento às regiões do espaço além do arquipélago da nossa nebulosa, veremos em torno de nós milhões de arquipélagos semelhantes e de formas diversas contendo cada um milhões de sóis e centenas de milhões de mundos habitados.

Tudo o que nos possa identificar com a imensidade da extensão e com a estrutura do Universo é de utilidade para a ampliação das ideias, tão restringidas pelas crenças vulgares. Deus amplia aos nossos olhos, à medida que melhor compreendemos a grandeza de suas obras e nossa pequenez. Como se vê, estamos longe da crença que a Gênese de Moisés implantou e que fez da nossa pequenina e imperceptível Terra a criação principal de Deus e dos seus habitantes os únicos objetos da sua solicitude. Compreendemos a vaidade dos homens que creem que tudo no Universo foi feito para eles e dos que ousam discutir a existência do Ente supremo. Dentro de alguns séculos, causará espanto que uma religião feita para glorificar a Deus o tenha rebaixado a tão mesquinhas proporções e que haja repelido, como concepção do espírito do mal, as descobertas que somente vieram aumentar a nossa admiração pela sua onipotência, iniciando-nos nos grandiosos mistérios da criação. Ainda maior será o espanto, quando souberem que elas foram repelidas porque emancipariam a inteligência dos homens e tirariam a preponderância dos que se diziam representantes de Deus na Terra.

ETERNA SUCESSÃO DOS MUNDOS

48. Vimos que uma única lei – primordial e geral – foi concedida ao Universo para lhe assegurar eternamente a estabilidade, e que essa lei geral é perceptível aos nossos sentidos por muitas ações particulares que nomeamos forças diretrizes da Natureza. Vamos agora mostrar que a harmonia do mundo inteiro – considerada sob o duplo aspecto da eternidade e do espaço – é garantida por essa lei suprema.

49. Com efeito, se retornarmos à origem primária das aglomerações da substância cósmica primitivas, notaremos então que a matéria já sofre as transformações necessárias, sob o império dessa lei, que levam da semente ao fruto maduro, e que, sob a impulsão das diversas forças nascidas dessa lei, ela percorre a escala das revoluções periódicas. Primeiramente, centro fluídico dos movimentos; em seguida, gerador dos mundos; mais tarde, núcleo central e atrativo das esferas que lhe nasceram do seio.

Já sabemos que essas leis presidem à história do Cosmo; o que agora importa saber é que elas presidem igualmente à destruição dos astros, porque a morte não é apenas uma metamorfose do ser vivo, mas também uma transformação da matéria inanimada. Se, em sentido literal, é certo dizermos que a vida só é acessível diante da morte, não é menos certo dizermos que para a substância é de toda necessidade sofrer as transformações próprias à sua composição.

50. Temos aqui um mundo que, desde o primitivo berço, percorreu toda a 88 – Allan Kardec

extensão dos anos que a sua organização especial lhe permitia percorrer. O foco interior da existência para ele acabou e seus elementos perderam a virtude inicial; os fenômenos da Natureza necessários para se produzirem, a presença e a ação das forças destinadas a esse mundo, já não mais podem se produzir, porque a alavanca da atividade delas já não dispõe do ponto de apoio que lhe era indispensável.

Ora, será que essa terra extinta e sem vida vai continuar a gravitar nos espaços celestes sem uma finalidade e passar como cinza inútil pelo vendaval dos céus? Será que permanece inscrita no livro da vida universal, agora que já se tornou letra morta e vazia de sentido? Não. As mesmas leis que a elevaram acima do caos tenebroso e que a presentearam com os esplendores da vida, as mesmas forças que a governaram durante os séculos da sua adolescência, que lhe firmaram os primeiros passos na existência e que a conduziram à idade madura e à velhice, vão também presidir à desagregação de seus elementos constitutivos, a fim de os restituir ao laboratório onde a potência criadora absorve incessantemente as condições da estabilidade geral. Esses elementos vão retornar à massa comum do éter, para se assimilarem a outros corpos, ou para regenerarem outros sóis. E a morte não será um acontecimento inútil, nem para a Terra que consideramos, nem para suas irmãs. Ela renovará outras criações de natureza diferente noutras regiões e, lá onde os sistemas de mundos se desvaneceram, em breve renascerá outro jardim de flores mais brilhantes e mais perfumadas.

51. Desse modo, a eternidade real e efetiva do Universo se acha garantida pelas mesmas leis que dirigem as operações do tempo. Desse modo, mundos sucedem a mundos, sóis a sóis, sem que o imenso mecanismo dos vastos céus jamais seja atingido nas suas gigantescas molas.

Onde os seus olhos admiram esplêndidas estrelas na abóbada da noite, onde o espírito humano contempla irradiações magníficas que resplandecem nos espaços distantes, há muito tempo que o dedo da morte suplantou esses esplendores, há muito tempo que o vazio sucedeu a esses deslumbramentos e já recebem mesmo novas criações ainda desconhecidas. A distância imensa a que se encontram esses astros – por efeito da qual a luz que nos enviam gasta milhares de anos a chegar até nós – faz com que somente hoje recebamos os raios que eles nos enviaram longo tempo antes da criação da Terra e com que ainda os admiremos durante milhares de anos após a sua desaparição real.83

83 Há aqui um efeito do tempo que a luz gasta para atravessar o espaço. Sendo que a sua velocidade é de 70 mil léguas por segundo, ela nos chega do Sol em 8 minutos e 13 segundos. Daí resulta que, se um fenômeno se passa na superfície do Sol, não o percebemos senão 8 minutos mais tarde e, pela mesma razão, ainda o veremos 8 minutos depois de seu fim. Se, em virtude do seu afastamento, a luz de uma estrela consome mil anos para chegar a nós, só mil anos depois da sua formação veremos essa estrela. (para explicação e descrição completa desse fenômeno, ver REVISTA ESPÍRITA de março e maio de 1867, resenha de Lumen, por Camille Flammarion).

Que são os seis mil anos da humanidade histórica, diante dos períodos dos séculos – segundos os séculos na Terra? Que são as observações astronômicas humanas diante do estado absoluto do mundo? – A sombra 89 – A GÊNESE

eclipsada pelo Sol.

52. Logo, vamos reconhecer aqui como nos nossos outros estudos, que a Terra e o homem não são nada em comparação com o que existe e que as mais colossais operações do nosso pensamento ainda se estendem apenas sobre um campo imperceptível, diante da imensidade e da eternidade de um universo que nunca terá fim.

E quando esses períodos da nossa imortalidade tiverem passado sobre nossas cabeças, quando a história atual da Terra nos aparecer qual sombra vaporosa no fundo da nossa lembrança; quando, durante séculos incontáveis, tivermos habitado esses diversos degraus da nossa hierarquia cosmológica; quando os mais distantes domínios das idades futuras tiverem sido examinados por nós em inúmeras peregrinações, teremos diante de nós a sucessão ilimitada dos mundos e por perspectiva a eternidade imóvel.

A VIDA UNIVERSAL

53. Essa imortalidade das almas, tendo por base o sistema do mundo físico, pareceu imaginária a certos pensadores prevenidos; qualificaram-na ironicamente de imortalidade viajora84 e não compreenderam que só ela é verdadeira diante do espetáculo da criação. Entretanto, podemos tornar compreensível toda a sua grandeza, quase diríamos “toda a sua perfeição”.

84 Viajora: relativo à viagem, aquela que viaja, que é passageira – N. D.

54. Que as obras de Deus sejam criadas para o pensamento e a inteligência; que os mundos sejam moradas de seres que as contemplam e lhes descobrem, sob o véu, o poder e a sabedoria daquele que as formou, são questões que já nos não oferecem dúvida; mas, que sejam solidárias as almas que as povoam, é o que importa saber.

55. Com efeito, a inteligência humana encontra dificuldade em considerar esses globos radiosos que brilham na amplidão como simples massas de matéria sem movimento e sem vida. Custa a ele pensar que nessas regiões distantes não haja magníficos crepúsculos e noites esplendorosas, sóis férteis e dias transbordantes de luz, vales e montanhas, onde as produções múltiplas da Natureza desenvolvam toda a sua luxuriante pompa. Custa imaginar, digo, que o espetáculo divino em que a alma pode retemperar-se como em sua própria vida, seja farto da existência e carente de qualquer ser pensante que o possa conhecer.

56. Mas, a essa ideia eminentemente justa da criação, faz-se necessário acrescentar a da humanidade solidária e é nisso que consiste o mistério da eternidade futura. 90 – Allan Kardec

Uma mesma família humana foi criada na universalidade dos mundos e os laços de uma fraternidade que ainda não sabem apreciar foram postos a esses mundos. Se os astros que se harmonizam em seus vastos sistemas são habitados por inteligências, não são assim por seres desconhecidos uns dos outros, mas ao contrário, por seres que trazem marcado na fronte o mesmo destino, que hão de se encontrar temporariamente, segundo suas funções de vida, e se encontrar de novo, segundo suas mútuas simpatias. É a grande família dos Espíritos que povoam as terras celestes; é a grande irradiação do Espírito divino que abrange a extensão dos céus e que permanece como tipo primitivo e final da perfeição espiritual.

57. Por que estranha aberração temos acreditado que fosse preciso negar à imortalidade as vastas regiões do éter, quando a continham dentro de um limite inadmissível e de uma dualidade absoluta? O verdadeiro esquema do mundo deveria então vir antes da verdadeira doutrina dogmática e a Ciência anteceder à Teologia? Esta se transviará tanto que irá colocar sua base sobre a Metafísica? A resposta é fácil e mostra que a nova filosofia se sentará triunfante nas ruínas da antiga, porque sua base terá sido erguida vitoriosa sobre os antigos erros.

DIVERSIDADE DOS MUNDOS

58. Acompanhando-nos em nossas excursões celestes, vocês visitaram conosco as regiões imensas do espaço. Debaixo das nossas vistas, os sóis sucederam aos sóis, os sistemas aos sistemas, as nebulosas às nebulosas; diante dos nossos passos, desenrolou-se o panorama esplêndido da harmonia do Cosmo e antegozamos a ideia do infinito, que somente de acordo com a nossa perfectibilidade futura poderemos compreender em toda a sua extensão. Os mistérios do éter nos desvendaram o seu enigma até aqui indecifrável e, pelo menos, concebemos a ideia da universalidade das coisas. Devemos agora passar a refletir.

59. Sem dúvida, é belo termos reconhecido o quanto a Terra é insignificante e o quanto é medíocre a sua importância na ordem dos mundos; é belo haver abatido a presunção humana, que nos é tão cara, e termos nos humilhado diante a grandeza absoluta; no entanto, ainda mais belo será interpretarmos em sentido moral o espetáculo de que fomos testemunhas. Quero falar do poder infinito da Natureza e da ideia que devemos fazer do seu modo de ação nos diversos domínios do vasto Universo.

60. Como estamos acostumados a julgar as coisas pela nossa insignificante e pobre habitação, imaginamos que a Natureza só pode ou só teve de agir sobre os outros mundos conforme suas regras que conhecemos na Terra. Ora, precisamente neste ponto é que importa reformar nossa maneira de ver.

Lancem o olhar por um instante sobre uma região qualquer seu mundo 91 – A GÊNESE

e sobre uma das produções da natureza terrena. Não reconhecerão aí o cunho de uma variedade infinita e a prova de uma atividade sem igual? Não podem ver na asa de um passarinho das Canárias, na pétala de um botão de rosa entreaberto a prestigiosa fertilidade dessa bela Natureza?

Apliquem os seus estudos aos seres que voam nos ares, desçam eles à violeta dos prados, mergulhem nas profundezas do oceano, em tudo e por toda a parte encontrarão esta verdade universal: A Natureza onipotente age conforme os lugares, os tempos e as circunstâncias; ela é una em sua harmonia geral, mas múltipla em suas produções; brinca com um Sol, como com uma gota d’água; povoa de seres vivos um mundo imenso com a mesma facilidade com que faz se abra o ovo posto pela borboleta.

61. Ora, se é assim a variedade que a Natureza nos permite evidenciar em todos os sítios deste pequeno mundo tão acanhado e tão limitado, quanto mais ampliado não devem considerar esse modo de ação, ponderando nas perspectivas dos mundos enormes! Quanto mais desenvolvida e robusta não devem reconhecer a Natureza, operando nesses mundos maravilhosos que atestam sua inapreciável perfeição, muito mais do que a Terra!

Então, não vejam em torno de cada um dos sóis do espaço, apenas sistemas planetários semelhantes ao seu sistema planetário; não vejam nesses planetas desconhecidos apenas os três reinos que se passeiam ao seu derredor. Ao contrário, pensem que, assim como nenhum rosto de homem se assemelha a outro rosto em todo o gênero humano, também uma portentosa e inimaginável diversidade se acha espalhada pelas moradas eternas que vigoram no seio dos espaços.

Do fato de que a sua natureza animada começa no zoófito85 para terminar no homem, de que a atmosfera alimenta a vida terrestre, de que o elemento líquido a renova incessantemente, de que as suas estações fazem que nessa vida os fenômenos que as diferenciem se sucedam, não concluam que os milhões e milhões de terras que rolam pela amplidão sejam semelhantes à que ora habitam. Longe disso, aquelas diferem, de acordo com as diversas condições que lhes foram prescritas e de acordo com o papel que a cada uma coube no cenário do mundo. São pedrarias variadas de um imenso mosaico, as diversificadas flores de admirável parque.

85 Zoófito: comum a diversos invertebrados, como as gorgônias, que se parecem com plantas por possuírem crescimento ramificado e viverem fixos ao substrato – N. D. 92 – Allan Kardec

CAPÍTULO VII

ESBOÇO GEOLÓGICO

DA TERRA

PERÍODOS GEOLÓGICOS

ESTADO PRIMITIVO DO GLOBO

PERÍODO PRIMÁRIO

PERÍODO DE TRANSIÇÃO

PERÍODO SECUNDÁRIO

PERÍODO TERCIÁRIO

PERÍODO DILUVIANO

PERÍODO PÓS-DILUVIANO, OU ATUAL.

 

NASCIMENTO DO HOMEM

PERÍODOS GEOLÓGICOS

1. A Terra conserva em si os traços evidentes da sua formação. Suas fases lhe acompanham com precisão matemática, nos diferentes terrenos que compõem a sua estrutura. O conjunto desses estudos forma a ciência chamada Geologia, ciência nascida deste século (XIX) e que projetou luz sobre a tão controvertida questão da origem do globo terreno e da dos seres vivos que habitam nele. Neste ponto, não há simples hipótese; há o resultado rigoroso da observação dos fatos e, diante dos fatos, nenhuma dúvida se justifica. A história da formação da Terra está escrita nas camadas geológicas, de maneira bem mais certa do que nos livros preconcebidos, porque é a própria Natureza que fala e se revela, e não a imaginação dos homens a criar teorias. Desde que notemos traços de fogo, podemos dizer com certeza que houve fogo ali; onde vemos os rastros da água, podemos dizer que a água esteve ali; desde que observemos os de animais, podemos dizer que aí viveram animais.

Portanto, a Geologia é uma ciência toda de experiêcias; só tira deduções do que vê; nada afirma sobre os pontos duvidosos; não emite opiniões discutíveis, por esperar de observações mais completas a solução procurada. Sem as descobertas da Geologia – como sem as da Astronomia – a Gênese do mundo ainda estaria nas trevas da lenda. Graças a elas, o homem conhece hoje a história da sua habitação, e a estrutura de fábulas que lhe rodeavam o berço desmoronou para não mais tornar a se erguer. 93 – A GÊNESE

2. Em todos os terrenos onde existam valas, escavações naturais ou praticadas pelo homem, nota-se o que chamamos estratificações, isto é, camadas superpostas. Os que apresentam essa disposição se designam pelo nome de terrenos estratificados. Essas camadas, de espessura que varia desde alguns centímetros até 100 metros e mais, se distinguem entre si pela cor e pela natureza das substâncias de que se compõem. Os trabalhos de arte, a perfuração de poços, a exploração de pedreiras e, sobretudo, de minas permitiram observá-las até grande profundidade.

3. Em geral, as camadas são homogêneas, isto é, cada uma constituída da mesma substância, ou de substâncias diversas, mas que existiram juntas e formaram um conjunto compacto. A linha de separação que as isola umas das outras é sempre nitidamente sulcada, como nas fiadas de uma construção. Em nenhuma parte se apresentam misturadas e sumidas umas nas outras, nos pontos de seus respectivos limites, como se dá, por exemplo, com as cores do prisma e do arco-íris.

Por essas características, reconhecemos que elas se formaram sucessivamente, depositando-se uma sobre outra, em condições e por causas diferentes. As mais profundas são naturalmente as que se formaram em primeiro lugar, tendo-se formado posteriormente as mais superficiais. A última de todas – a que se acha na superfície – é a camada da terra vegetal, que deve suas propriedades aos detritos de matérias orgânicas provenientes das plantas e dos animais.

4. As camadas inferiores, colocadas abaixo da camada vegetal, receberam em geologia o nome de rochas, palavra que, nesse sentido, nem sempre implica a ideia de uma substância pedrosa, significando antes um leito ou banco feito de uma substância mineral qualquer. Umas são formadas de areia, de argila ou de terra argilosa, de marna, de seixos rolados; outras o são de pedras propriamente ditas, mais ou menos duras, tais como os grés, os mármores, a cré, os calcáreos ou pedras calcáreas, as pedras molares, ou carvões-de-pedra, os asfaltos, etc. Diz-se que uma rocha é mais ou menos possante, conforme é mais ou menos considerável a sua espessura.

Mediante o exame da natureza dessas rochas ou camadas, por sinais certos, reconhecemos que umas vêm de matérias fundidas e, às vezes, vitrificadas sob a ação do fogo; outras, de substâncias terrosas postas pelas águas; algumas de tais substâncias se conservaram desagregadas, como as areias; outras, a princípio em estado pastoso, sob a ação de certos agentes químicos ou por outras causas, endureceram e adquiriram, com o tempo, a consistência da pedra. Os bancos de pedras superpostas denunciam depósitos sucessivos. Evidentemente, o fogo e a água participaram da formação dos materiais que compõem o sistema sólido do globo terráqueo.

5. A posição normal das camadas terrosas ou pedregosas, provenientes de depósitos aquosos, é a horizontal. Ao vermos essas planícies imensas, que por 94 – Allan Kardec

vezes se estendem a perder de vista, de perfeita horizontalidade, lisas como se as tivessem nivelado com um rolo compressor, ou esses vales profundos, tão planos como a superfície de um lago, podemos estar certos de que, em época mais ou menos afastada, tais lugares estiveram por longo tempo cobertos de águas tranquilas que ao se retirarem deixaram a seco as terras que elas depositaram enquanto ali permaneceram. Retiradas as águas, essas terras se cobriram de vegetação. Se, em vez de terras gordas, limosas, argilosas, ou marnosas, próprias a assimilar os princípios nutritivos, as águas apenas depositaram areias silicosas, sem agregação, temos as planícies arenosas que constituem as charnecas e os desertos, dos quais nos podem dar pequena ideia os depósitos que ficam das inundações parciais e os que formam as barros na embocadura dos rios.

6. Embora a posição horizontal seja a mais generalizada e a que normalmente assumem as formações aquosas, não é raro vermos rochas duras nos países montanhosos e em extensões bem grandes, cuja natureza indica que foram formadas em posição inclinada e, até por vezes, vertical. Ora, como segundo as leis de equilíbrio dos líquidos e da gravidade, os depósitos aquosos somente podem formar-se em planos horizontais, pois os que se formam sobre planos inclinados são arrastados pelas correntes e pelo próprio peso para as baixadas, evidente se torna que tais depósitos foram levantados por uma força qualquer, depois de se terem solidificado ou transformado em pedras.

Certamente, destas considerações podemos concluir que todas as camadas pedrosas que, provindo de depósitos aquosos, se encontram em posição perfeitamente horizontal, foram formadas, durante séculos, por águas tranquilas e que, todas as vezes que se achem em posição inclinada, o solo foi convulsionado e deslocado posteriormente, por subversões gerais ou parciais, mais ou menos consideráveis.

7. Um fato característico e da mais alta importância, pelo testemunho irrecusável que oferece, consiste no fato de existirem, e em quantidades enormes, despojos fósseis de animais e vegetais dentro das diferentes camadas. Como esses despojos se encontram até nas mais duras pedras, haveremos de concluir que a existência de tais seres é anterior à formação das referidas pedras. Ora, se levarmos em conta o prodigioso número de séculos que foram necessários para que seu endurecimento se produzisse e para que elas alcançassem o estado em que se acham desde tempos imemoriais, obrigatoriamente chegamos à conclusão de que o aparecimento de seres vivos na Terra se perde na noite das idades e consequentemente é muito anterior à data que a Gênese assinala.86

86 Fóssil, do latim fossilia, fossilis, derivado de fossa, e de fodere, cavar, escavar a terra, é uma palavra que em Geologia se emprega designando corpos ou despojos de corpos orgânicos de seres que viveram anteriormente às épocas históricas. Por extensão, diz-se igualmente das substâncias minerais que revelam traços da presença de seres organizados, quais as marcas deixadas por vegetais ou animais. 95 – A GÊNESE

O termo petrificado se emprega relativamente aos corpos que se transformaram em pedra, pela infiltração de matérias silicosas ou calcáreas nos tecidos orgânicos. Todas as petrificações necessariamente são fósseis, mas nem todos os fósseis são petrificações.

Nos objetos que se revestem de uma camada pedregosa quando mergulhados em certas águas carregadas de substâncias calcáreas, como as do regato de Saint Allyre, perto de Clermont, no Auvergne (França), não são petrificações propriamente ditas, porém simples incrustações.

Os monumentos, inscrições e objetos produzidos por fabricação humana, esses pertencem à Arqueologia.

87 No ponto a que Jorge Cuvier levou a ciência paleontológica, frequentemente basta um só osso para determinar o gênero, a espécie, a forma de um animal, seus hábitos, e para reconstruí-lo todo inteiro.

8. Entre os despojos de vegetais e animais, alguns há que se mostram penetrados em todos os pontos de sua substância, sem que isso lhes alterasse a forma, de matérias silicosas ou calcáreas que os transformaram em pedras, algumas das quais apresentam a dureza do mármore. São as petrificações propriamente ditas. Outros foram apenas envolvidos pela matéria no estado de flacidez; são encontrados intactos e, alguns, inteiros, nas mais duras pedras. Outros, finalmente, apenas deixaram marcas, mas de perfeita nitidez e delicadeza. No interior de certas pedras, são encontradas até marcas de passos e, pela forma do pé, dos dedos e das unhas, reconhece-se a espécie animal a que pertenceram.

9. Os fósseis de animais absolutamente só contêm as partes sólidas e resistentes, isto é, as ossaturas, as escamas e os cornos – e isso é fácil de conceber-se; não raro, são esqueletos completos; muitas das vezes, no entanto, são apenas partes destacadas, mas cuja procedência facilmente é reconhecida. Examinando-se uma queixada, um dente, logo se vê se pertence a um animal herbívoro, ou carnívoro. Como todas as partes do animal guardam necessária correlação, a forma da cabeça, de uma omoplata, de um osso da perna, de um pé, basta para determinar o porte, a forma geral, o gênero de vida do animal87. Os animais terrestres têm uma organização que não permite que sejam confundidos com os animais aquáticos.

São extremamente numerosos os peixes e os moluscos testáceos fósseis; às vezes,só estes últimos formam bancos inteiros de grande espessura. Pela natureza deles, verificamos sem dificuldade se são animais marinhos ou de água doce.

10. Os seixos rolados, que em certos lugares formam rochas formidáveis, constituem inequívoco indício da origem deles. São arredondados como os calhaus de beira-mar, sinal certo do atrito que sofreram por efeito das águas. As regiões onde eles se encontram enterrados, em massas consideráveis, foram incontestavelmente ocupadas pelo oceano, ou, durante longo tempo, por outras águas movediças, ou violentamente agitadas.

11. Além disso, os terrenos das diversas formações se caracterizam pela natureza mesma dos fósseis que trazem. As mais antigas contêm espécies animais ou vegetais que desapareceram inteiramente da superfície do planeta. Também desapareceram algumas espécies mais recentes; porém, conservaram- 96 – Allan Kardec

se outras semelhantes – que apenas diferem daquelas pelo porte e por alguns tons de forma. Finalmente, outras – as quais nos ainda vemos seus últimos representantes – tendem evidentemente a desaparecer em futuro mais ou menos próximo, tais como os elefantes, os rinocerontes, os hipopótamos, etc. Assim, à medida que as camadas terrestres se aproximam da nossa época, as espécies animais e vegetais também se aproximam das que existem hoje.

As perturbações e os cataclismos que se produziram na Terra desde a sua origem mudaram suas condições de aptidão para entretenimento da vida e fizeram que desaparecessem gerações inteiras de seres vivos.

12. Interrogando a natureza das camadas geológicas, passamos a saber de modo mais concreto se na época de sua formação a região onde elas se apresentam era ocupada pelo mar, pelos lagos, ou por florestas e planícies povoadas de animais terrestres. Consequentemente, se numa mesma região se encontra uma série de camadas superpostas, contendo alternativamente fósseis marinhos, terrestres e de água doce – muitas vezes repetidas – esse fato é prova irrecusável de que essa região foi muitas vezes invadida pelo mar, coberta de lagos e posta a seco.

E quantos séculos de séculos, certamente, ou talvez quantos milhares de séculos não foram precisos para que cada período se completasse! Que força poderosa não foi necessária para deslocar e recolocar o oceano, levantar montanhas! Por quantas revoluções físicas e comoções violentas a Terra não teve de passar antes de ser qual a vemos desde os tempos históricos! E há quem queira que tudo isso fosse obra executada em menos tempo do que o período que uma planta leva para germinar!

13. Como já foi dito, o estudo das camadas geológicas atesta formações sucessivas que mudaram o aspecto do globo e dividem sua história em muitas épocas, que constituem os chamados períodos geológicos, cujo conhecimento é essencial para a determinação da Gênese. São em número de seis os principais períodos, designados pelos nomes de: primário, de transição, secundário, terciário, diluviano, pós-diluviano ou atual. Os terrenos formados durante cada período também se chamam: terrenos primitivos, de transição, secundários, etc. Diz-se, pois, que tal ou tal camada ou rocha, tal ou tal fóssil se encontram nos terrenos de tal ou tal período.

14. Devemos notar que o número desses períodos não é absoluto, pois depende dos modelos de classificação. Nos seis principais mencionados acima, só se compreendem os que estão assinalados por uma mudança notável e geral no estado do planeta; mas, a observação prova que muitas formações sucessivas se operaram, enquanto durou cada um deles. Por isso é que são divididos em seis períodos caracterizados pela natureza dos terrenos e que elevam o número das formações gerais bem assinaladas a vinte e seis, sem contar os que vêm de modificações devidas a causas puramente locais. 97 – A GÊNESE

ESTADO PRIMITIVO DO GLOBO

15. O achatamento dos polos e outros fatos certos são indícios inquestionáveis de que o estado da Terra na sua origem deve ter sido o de fluidez ou de flacidez, estado esse oriundo de a matéria ser liquefeita pela ação do fogo, ou diluída pela da água.

Costuma-se dizer como provérbio: não há fumaça sem fogo. Sendo rigorosamente verdadeira, esta sentença traz uma aplicação do princípio: não há efeito sem causa. Pela mesma razão, podemos dizer: não há fogo sem um foco. Ora, pelos fatos que se passam sob as nossas vistas, não é apenas fumaça o que se produz na Terra, mas fogo bastante real, que há de ter um foco. Vindo esse fogo do interior do planeta e não do alto, o foco lhe há de estar no interior e, como o fogo é permanente, o foco também há de ser assim.

O calor (cujo aumento é progressivo à medida que se penetra no interior da Terra e que, a certa profundidade) chega a uma temperatura altíssima; as fontes térmicas, tanto mais quentes, quanto mais profunda lhes está a nascente; os fogos e as massas de matéria fundida esbraseada que os vulcões vomitam, como por vastos respiradouros, ou pelas fendas que alguns tremores de terra abrem, não deixam dúvida sobre a existência de um fogo interior.

16. A experiência demonstra que a cada 30 metros de profundidade a temperatura se eleva um grau, donde se segue que, a uma profundidade de 300 metros, o aumento é de 10 graus; a 3.000 metros, de 100 graus, temperatura da água a ferver; a 30.000 metros, ou seja, 7 ou 8 léguas, de 1.000 graus; a 25 léguas, de mais de 3.300 graus, temperatura a que nenhuma matéria conhecida resiste à fusão. Daí ao centro, ainda há um espaço de mais de 1.400 léguas, ou 2.800 léguas em diâmetro, espaço que seria ocupado por matérias fundidas.

Embora não haja aí mais do que uma hipótese, julgando da causa pelo efeito, ela tem todos os caracteres da probabilidade e leva à conclusão de que a Terra ainda é uma massa incandescente recoberta de uma crosta sólida da espessura de 25 léguas no máximo, o que é apenas a 120ª parte do seu diâmetro. Proporcionalmente, seria muito menos do que a espessura da mais fina casca de laranja.

Aliás, é muito variável a espessura da crosta terrestre, pois há zonas onde o calor e a flexibilidade do solo indicam que ela é pouco considerável – sobretudo nos terrenos vulcânicos. A elevada temperatura das águas termais constitui igualmente indício de proximidade do foco central.

17. Assim sendo, se torna evidente que o antigo estado de fluidez ou de flacidez da Terra há de ter tido como causa a ação do calor e não a da água, isso em sua origem, pois, a Terra era uma massa incandescente. Em virtude da irradiação do calórico, deu-se o que se dá com toda matéria em fusão: como era natural, ela esfriou pouco a pouco, principiando o resfriamento pela superfície, que então endureceu, ao passo que o interior se conservou fluido. Pode-se assim 98 – Allan Kardec

comparar a Terra a um bloco de carvão ao sair ardente da fornalha e cuja superfície se apaga e resfria, ao contato do ar, mantendo-se seu interior em estado de ignição, conforme se verificará, quebrando-o.

18. Na época em que o globo terrestre era uma massa incandescente, não continha nenhum átomo a mais, nem a menos do que hoje;88 apenas, sob a influência da alta temperatura, a maior parte das substâncias que a compõem e que vemos sob a forma de líquidos ou de sólidos, de terras, de pedras, de metais e de cristais se achavam em estado muito diferente. Sofreram unicamente uma transformação. Em consequência do resfriamento, os elementos formaram novas combinações. O ar – enormemente dilatado – certamente se estendia a uma distância imensa; toda a água, forçosamente transformada em vapor, se encontrava misturada com o ar; todas as matérias suscetíveis de se volatilizarem (tais como os metais, o enxofre, o carbono) se achavam em estado de gás. O da atmosfera nada tinha, portanto, de comparável ao que é hoje; a densidade de todos esses vapores lhe dava uma opacidade que nenhum raio de sol podia atravessar. Se nessa época um ser vivo pudesse existir na superfície do planeta, apenas seria iluminado pelos revérberos sinistros da fornalha que lhe estava sob os pés e da atmosfera esbraseada; ele nem sequer suspeitaria da existência do Sol.

88 Parece-nos que Kardec se referia apenas à Terra propriamente dita, não levando em conta os aerólitos e a poeira cósmica que a ela se vêm juntando – Nota da Editora.

89 Liquefação: transição ao estado líquido de substância que se encontra no estado gasoso ou sólido – N. D.

PERÍODO PRIMÁRIO

19. O primeiro efeito do resfriamento foi a solidificação da superfície exterior da massa em fusão e a formação aí de uma crosta resistente que, delgada a princípio, gradativamente se espessou. Essa crosta forma a pedra chamada granito, de extrema dureza, assim denominada pelo seu aspecto granuloso. Nela se distinguem três substâncias principais: o feldspato, o quartzo ou cristal de rocha e a mica. Esta última tem brilho metálico, embora não seja um metal.

Pois a camada granítica foi a primeira que se formou no globo, é a que o envolve por completo, constituindo de certo modo o seu arcabouço ósseo. É o produto direto da consolidação da matéria fundida. Sobre ela e nas cavidades que apresentava a sua superfície torturada foi que se depositaram sucessivamente as camadas dos outros terrenos, posteriormente formados. O que a distingue destes últimos é a ausência de toda e qualquer estratificação; quer dizer: ela forma uma massa compacta e uniforme em toda a sua espessura, que não é disposta em camadas. A efervescência da matéria incandescente havia de produzir nela numerosas e profundas fendas, pelas quais essa mesma matéria extravasava.

20. O efeito seguinte do resfriamento foi a liquefação89 de algumas matérias 99 – A GÊNESE

contidas no ar em estado de vapor, as quais se precipitaram na superfície do solo. Houve então chuvas e lagos de enxofre e de betume, verdadeiros regatos de ferro, cobre, chumbo e outros metais fundidos. Infiltrando-se pelas fissuras, essas matérias constituíram os veios e filões metálicos.

Sob a influência desses diversos agentes, a superfície granítica experimentou alternativas decomposições. Produziram-se misturas que formaram os terrenos primitivos propriamente ditos, distintos da rocha granítica, mas em massas confusas e sem estratificação regular.

A seguir, vieram as águas que, caindo sobre um solo ardente, se vaporizavam de novo, recaíam em chuvas torrenciais e assim sucessivamente, até a temperatura lhes permitir que permanecerem no solo em estado líquido.

É a formação dos terrenos graníticos que dá começo à série dos períodos geológicos, aos quais seria conveniente que se acrescentasse o do estado primitivo, de incandescência do globo.

21. Esse foi o aspecto do primeiro período, verdadeiro caos de todos os elementos confundidos, à procura de estabilização – período em que nenhum ser vivo podia existir. Por isso mesmo, um de seus caracteres distintivos em geologia é a ausência de qualquer vestígio de vida vegetal ou animal.

Torna-se impossível assinar duração determinada a esse período, do mesmo modo que aos que se lhe seguiram. Mas, dado o tempo que se faz necessário para que uma bala de determinado volume, aquecida até ao branco, se resfrie na superfície, ao ponto de permitir que uma gota d’água possa sobre ela permanecer em estado líquido, calculou-se que, se essa bala tivesse o tamanho da Terra, necessários seriam mais de um milhão de anos.

PERÍODO DE TRANSIÇÃO

22. No começo do período de transição, ainda era pequena a espessura da sólida crosta granítica, que, portanto, oferecia resistência muito fraca à efervescência das matérias enfogadas que ela cobria e comprimia. Com isso, produziam-se dilatações, despedaçamentos numerosos, por onde se escapava a lava interior. O solo apresentava desigualdades pouco consideráveis.

As águas (pouco profundas) cobriam quase toda a superfície do globo, com exceção das partes erguidas, que formando terrenos baixos, eram frequentemente alagados.

O ar gradativamente se purgava das matérias mais pesadas, temporariamente em estado gasoso, as quais, condensando-se por efeito do resfriamento, se haviam precipitado na superfície do solo, sendo depois arrastadas e dissolvidas pelas águas.

Quando se fala de resfriamento naquela época, deve-se entender essa palavra em sentido relativo, isto é, em relação ao estado primitivo, porque a temperatura ainda havia de ser ardente.

Os grossos vapores aquosos que se elevavam de todos os lados da 100 – Allan Kardec

imensa superfície líquida, recaíam em chuvas copiosas e quentes, que obscureciam o ar. Entretanto, os raios do Sol começavam a aparecer, através dessa atmosfera brumosa.

Uma das últimas substâncias de que o ar teve de expurgar-se (pelo seu estado natural ser grosso) foi o ácido carbônico, então um dos seus componentes.

23. Por essa época, as camadas de terrenos de sedimento começaram a se formarem, depositadas pelas águas carregadas de limo e de matérias diversas, apropriadas à vida orgânica.

Surgem aí os primeiros seres vivos do reino vegetal e do reino animal. Deles se encontram vestígios, a princípio em número reduzido, porém, depois, cada vez mais frequentes, à medida que se vai passando às camadas mais elevadas dessa formação. É digno de nota que por toda parte a vida se manifesta, logo que as condições lhe são propícias, nascendo cada espécie desde que se realizam as condições próprias à sua existência.

24. Os primeiros seres orgânicos que apareceram na Terra foram os vegetais de organização menos complicada, designados em botânica sob os nomes de criptógamos, acotiledôneos, monocotiledôneos, isto é, liquens, cogumelos, musgos, fetos e plantas herbáceas. Absolutamente, ainda se não veem árvores de tronco lenhoso, mas, apenas, as do gênero palmeira, cuja haste esponjosa é análoga à das ervas.

Os animais desse período, que apareceram em seguida aos primeiros vegetais, eram exclusivamente marinhos: primeiramente, polipeiros, raiados, zoófitos, animais de organização simples e, por assim dizer, rudimentar, que se aproxima no máximo grau da dos vegetais. Mais tarde, aparecem crustáceos e peixes de espécies que já não existem.

25. Sob o império do calor e da umidade e em virtude do excesso de ácido carbônico espalhado no ar – gás impróprio à respiração dos animais terrestres, mas necessário às plantas –, os terrenos expostos se cobriram rapidamente de uma vegetação pujante, ao mesmo tempo em que as plantas aquáticas se multiplicavam no seio dos pântanos. Plantas que nos dias atuais são simples ervas de alguns centímetros, atingiam altura e grossura prodigiosas. Assim é que havia florestas de fetos arborescentes de 8 a 10 metros de altura e de proporcional grossura. Licopódios (marroio, gênero de musgo), do mesmo porte; cavalinhas90, de 4 a 5 metros, e cuja altura não passa hoje de um metro, e uma infinidade de espécies que não mais existem. Pelos fins do período, começam a aparecer algumas árvores do gênero conífero ou pinheiros.

90 Planta dos pauis, vulgarmente chamada cavalinha ou cauda de cavalo.

26. Como resultado do deslocamento das águas, os terrenos que produziam essas massas de vegetais foram submergidos, cobertos de novos sedimentos terrosos, enquanto os que se achavam emersos se adornavam, a seu turno, de 101 – A GÊNESE

vegetação semelhante. Houve assim muitas gerações de vegetais alternativamente aniquiladas e renovadas. O mesmo não se deu com os animais que não estavam sujeitos a essas alternativas – por serem todos aquáticos.

Acumulados durante longa série de séculos, esses destroços formaram camadas de grande espessura. Sob a ação do calor, da umidade, da pressão exercida, pelos posteriores depósitos terrosos e, sem dúvida, de diversos agentes químicos, dos gases, dos ácidos e dos sais produzidos pela combinação dos elementos primitivos, aquelas matérias vegetais sofreram uma fermentação que as converteu em hulha ou carvão-de-pedra. As minas de hulha são, pois, produto direto da decomposição dos acervos de vegetais acumulados durante o período de transição. É por isso que são encontrados em quase todas as regiões91.

91 A turfa se formou da mesma maneira, pela decomposição dos amontoados de vegetais, em terrenos pantanosos; mas, com a diferença de que, sendo de formação muito mais recente e sem dúvida noutras condições, ela não teve tempo de se carbonizar.

92 Na baía de Fundy (Nova Escócia), o Sr. Lyell encontrou, numa camada de hulha de espessura de 400 metros, 68 níveis diferentes, apresentando traços evidentes de muitos solos de florestas, de cujas árvores os troncos ainda estavam guarnecidos de suas raízes. (L. Figuier).

Não dando mais de mil anos para a formação de cada um desses níveis, já teríamos 68.000 anos só para essa camada de hulha.

27. Os restos fósseis da pujante vegetação dessa época, achando-se hoje sob os gelos das terras polares, tanto quanto na zona tórrida, segue-se que, uma vez que a vegetação era uniforme, também a temperatura havia de ser assim. Portanto, os polos não se achavam cobertos de gelo, como agora. É que, então, a Terra tirava de si mesma o calor, do fogo central que aquecia de igual modo toda a camada sólida, ainda pouco espessa. Esse calor era superior de muito ao que podia vir dos raios solares, enfraquecidos demais pela densidade da atmosfera. Só mais tarde, quando a ação do calor central se tornou muito fraca ou nula sobre a superfície exterior do globo, a do Sol passou a preponderar e as regiões polares, que apenas recebiam raios curvos, portadores de pequena quantidade de calor, se cobriram de gelo. Compreende-se que na época de que falamos e ainda muito tempo depois, o gelo era desconhecido na Terra.

A julgar pelo número e pela espessura das camadas de hulha, Esse período deve ter sido muito longo92.

PERÍODO SECUNDÁRIO

28. Com o período de transição desaparecem a vegetação colossal e os animais que caracterizavam a época – ou porque as condições atmosféricas já não fossem as mesmas, ou porque uma série de cataclismos tenha aniquilado tudo o que tinha vida na Terra. É provável que as duas causas tenham contribuído para essa mudança, por isso que, de um lado, o estudo dos terrenos que marcam o fim desse período comprova a ocorrência de grandes subversões vindas de levantamentos e erupções que derramaram grandes quantidades de 102 – Allan Kardec

lavas sobre o solo, e, de outro lado, porque grandes mudanças se operaram nos três reinos.

29. O período secundário, sob o aspecto mineral, se caracteriza por numerosas e fortes camadas que atestam uma formação lenta no seio das águas e marcam diferentes épocas bem caracterizadas.

A vegetação é menos rápida e menos colossal que no período precedente, sem dúvida em virtude da diminuição do calor e da umidade e de modificações sobrevindas aos elementos constitutivos da atmosfera. Às plantas herbáceas e polpudas, juntam-se as de caule lenhoso e as primeiras árvores propriamente ditas.

30. Os animais ainda são aquáticos, ou quando nada, anfíbios; a vida vegetal progride pouco na terra seca. Uma prodigiosa quantidade de animais de conchas se desenvolve no meio dos mares, devido à formação das matérias calcáreas. Nascem novos peixes, de organização mais aperfeiçoada do que no período anterior. Aparecem os primeiros cetáceos. Os mais característicos animais dessa época são os reptis monstruosos, entre os quais se notam:

O ictiossauro, espécie de peixe-lagarto que chegava a ter 10 metros de comprido e cujas mandíbulas, prodigiosamente alongadas, eram armadas de 180 dentes. Sua forma geral lembra um pouco a do crocodilo, mas sem couraça escamosa. Seus olhos tinham o volume da cabeça de um homem; possuía barbatanas como a baleia e, como esta, expelia água por aberturas próprias para isso.

O plesiossauro, outro reptil marinho, tão grande quanto o ictiossauro, e cujo pescoço, excessivamente longo, se dobrava, como o do cisne, e lhe dava a aparência de enorme serpente ligada a um corpo de tartaruga. Tinha a cabeça do lagarto e os dentes do crocodilo. Sua pele devia ser lisa, qual a do precedente, porquanto não se lhe descobriu nenhum vestígio de escamas ou de concha.93

93 O primeiro fóssil deste animal foi descoberto, na Inglaterra, em 1823. Depois, encontraram-se outros na França e na Alemanha.

O teleossauro, que mais se aproxima dos crocodilos atuais, parecendo estes um seu diminutivo. Como os últimos, tinha uma couraça escamosa e vivia, ao mesmo tempo, na água e em terra. Seu talhe era de cerca de 10 metros, dos quais 3 ou 4 só para a cabeça. A boca tinha de abertura 2 metros.

O megalossauro, grande lagarto, espécie de crocodilo, de 14 a 15 metros de comprimento. Essencialmente carnívoro, nutria-se de reptis, de pequenos crocodilos e de tartarugas. Sua formidável mandíbula era armada de dentes em forma de lâmina de podadeira, de gume duplo, recurvados para trás, de tal jeito que, uma vez enterrados na presa, impossível se tornaria a esta desprender-se.

O iguanodonte, o maior dos lagartos que já apareceram na Terra. Tinha de 20 a 25 metros da cabeça à extremidade da cauda e sobre o focinho um chifre ósseo, semelhante ao do iguano da atualidade, do qual parece que não 103 – A GÊNESE

diferia senão pelo tamanho. O último tem apenas 1 metro de comprido. A forma dos dentes prova que ele era herbívoro e a dos pés que era animal terrestre.94

94 Somente após a desencarnação do autor, ocorrida em 1869, foram descobertos, na Inglaterra, fragmentos suficientes à montagem de um exemplar completo, pelos paleontólogos, permitindo melhor elucidar detalhes da descrição desse dinossauro. Ficou, então, claro que ele tinha uma calosidade óssea sobre o focinho, como os iguanídeos uma crista espinhosa no dorso, inexistindo chifres, que, no entanto, eram bastante evidentes em outros monstros, como nos saurópodos – Nota da Editora na 16ª edição (1973).

O pterodáctilo, animal estranho, do tamanho de um cisne, participando, simultaneamente, do reptil pelo corpo, do pássaro pela cabeça e do morcego pela membrana carnuda que lhe religava os dedos prodigiosamente longos. Essa membrana lhe servia de paraquedas quando se precipitava sobre a presa do alto de uma árvore ou de um rochedo. Não possuía bico córneo como os pássaros, mas os ossos das mandíbulas, do comprimento da metade do corpo e guarnecidos de dentes, terminavam em ponta como um bico.

31. Durante esse período – que há de ter sido muito longo, como o número e a potência das camadas geológicas atestam – a vida animal tomou enorme desenvolvimento no seio das águas, tal como ocorreu com a vegetação no período que se passou. Mais depurado e mais favorável à respiração, o ar começou a permitir que alguns animais vivessem em terra. O mar se deslocou muitas vezes, mas sem abalos violentos. Com esse período, desaparecem, por sua vez, aquelas raças de gigantescos animais aquáticos, substituídos mais tarde por espécies parecidas, de formas menos desproporcionadas e de menor porte.

32. O orgulho levou o homem a dizer que todos os animais foram criados por sua causa e para satisfação de suas necessidades. Mas, qual o número dos que lhe servem diretamente, dos que lhe foi possível submeter, comparado ao número incalculável daqueles com os quais ele nunca teve e nem nunca terá quaisquer relações? Como pode sustentar semelhante tese, em face das inumeráveis espécies que exclusivamente povoaram a Terra por milhares e milhares de séculos, antes que ele aí surgisse, e que afinal desapareceram? Poderemos afirmar que elas foram criadas em seu proveito? Entretanto, todas as espécies tinham a sua razão de ser, a sua utilidade. Certamente, Deus não as criou por simples capricho da Sua vontade para em seguida dar a Si mesmo o prazer de aniquilá-las, pois que todas tinham vida, instintos, sensação de dor e de bem-estar. Com que fim Ele o fez? Com um fim que há de ter sido soberanamente sábio, embora ainda o não compreendamos. Certamente, um dia será dado ao homem conhecê-lo, para confusão do seu orgulho; mas, enquanto isso não se verifica, como se ampliam as suas ideias diante os novos horizontes em que agora lhe é permitido mergulhar a vista, em presença do imponente espetáculo dessa criação, tão majestosa no seu lento caminhar, tão admirável na sua previdência, tão pontual, tão precisa e tão invariável nos seus resultados! 104 – Allan Kardec

PERÍODO TERCIÁRIO

33. Com o período terciário uma nova ordem de coisas começa para a Terra. O estado da sua superfície muda completamente de aspecto; modificam-se profundamente as condições de vitalidade e se aproximam do estado atual. Os primeiros tempos desse período são marcados por uma interrupção da produção vegetal e animal; tudo revela traços de uma destruição quase geral dos seres vivos, depois do que aparecem sucessivamente novas espécies, em que uma organização mais perfeita se adapta à natureza do meio onde são chamados a viver.

34. Durante os períodos anteriores, em virtude da sua pequena espessura, a crosta sólida do globo apresentava resistência bem fraca à ação do fogo interior – como já dissemos. Facilmente despedaçado, esse envoltório permitia que as matérias em fusão se derramassem livremente pela superfície do solo. Não foi o que aconteceu quando ganhou certa espessura. Então, comprimidas de todos os lados, as matérias esbraseadas como a água em ebulição num vaso fechado acabaram por produzir uma espécie de explosão. Violentamente quebrada num sem-número de pontos, a massa granítica ficou crivada de fendas, como um vaso rachado. Ao longo dessas fendas, a crosta sólida, levantada e deprimida, formou os picos, as cadeias de montanhas e suas ramificações. Certas partes do envoltório não chegaram a ser despedaçadas, foram apenas erguidas, enquanto que noutros pontos se produziram decalcamentos e escavações.

A superfície do solo tornou-se então muito desigual; as águas que até aquele momento a cobriam de maneira quase uniforme na maior parte da sua extensão, foram arrastadas para os lugares mais baixos, deixando a seco vastos continentes, ou cumes isolados de montanhas, formando ilhas.

Esse foi o grande fenômeno que se operou no período terciário e que transformou o aspecto do globo. Ele não se produziu instantânea, nem simultaneamente em todos os pontos, mas sucessivamente e em épocas mais ou menos distanciadas.

35. Como já ficou dito, uma das primeiras consequências desses levantamentos foi a inclinação das camadas de sedimento, primitivamente horizontais e assim conservadas onde quer que o solo não sofreu subversões. Foi, portanto, nos flancos e nas proximidades das montanhas que essas inclinações mais se pronunciaram.

36. Nas regiões onde as camadas de sedimento conservaram a horizontalidade, para se chegar às de formação primária temos que atravessar todas as outras, até considerável profundidade, ao fim da qual inevitavelmente encontramos a rocha granítica. Quando, porém, se ergueram em montanhas, aquelas camadas foram levadas acima do seu nível normal, indo às vezes até a grande altura, de tal sorte que, feito um corte vertical no flanco da montanha, elas se mostram em toda a sua espessura e superpostas como as fiadas de uma construção. 105 – A GÊNESE

É assim que a grandes elevações se encontram enormes bancos de conchas, primitivamente formados no fundo dos mares. Está hoje perfeitamente comprovado que em nenhuma época o mar tem podido alcançar semelhantes alturas, visto que para tanto não bastariam todas as águas existentes na Terra, ainda mesmo que fossem em quantidade cem vezes maior.

Então teríamos de supor que a quantidade de água diminuiu e, então, caberia perguntar o que foi feito da porção que desapareceu. Os levantamentos, explicam de maneira lógica e rigorosa os depósitos marinhos que se encontram em certas montanhas – fato hoje incontestável.95

95 Camadas de calcáreo conchífero foram encontradas nos Andes, América, a 5.000 metros acima do nível do oceano.

37. Nos lugares onde o levantamento da rocha primitiva produziu completa rasgadura do solo – seja pela rapidez do fenômeno, seja pela forma, altura e volume da massa levantada, o granito foi posto a nu, como um dente que rompeu da gengiva. Levantadas, quebradas e arrumadas, as camadas que o revestiam ficaram a descoberto. É assim que terrenos pertencentes às mais antigas formações e que, na posição primitiva, se achavam a grande profundidade, compõem hoje o solo de certas regiões.

38. Deslocada por efeito dos erguimentos, a massa granítica deixou em alguns sítios fendas por onde se escapa o fogo interior e se escoam as matérias em fusão; os vulcões (que são como que chaminés da imensa fornalha, ou, melhor, válvulas de segurança que, dando saída ao excesso das matérias ígneas) preservam o globo de comoções muito mais terríveis. Daí o fato de podermos dizer que os vulcões em atividade são uma segurança para o conjunto da superfície do solo.

Da intensidade desse fogo é possível fazer-se ideia, ponderando-se que no seio mesmo dos mares se abrem vulcões e que a massa d’água que os recobre e neles penetra não consegue acabá-los.

39. Os levantamentos operados na massa sólida necessariamente deslocaram as águas, sendo estas impelidas para as partes côncavas, que ao mesmo tempo se haviam tornado mais profundas pela elevação dos terrenos emergidos e pela depressão de outros. Mas, esses terrenos tornados baixos, levantados por sua vez ora num ponto, ora noutro, expulsaram as águas, que refluíram para outros lugares e assim por diante, até que houvessem podido tomar um leito mais estável.

Os sucessivos deslocamentos dessa massa líquida forçosamente trabalharam e torturaram a superfície do solo. As águas, escoando-se, arrastaram consigo uma parte dos terrenos de formações anteriores, postos a descoberto pelos levantamentos, desnudaram algumas montanhas que eles cobriam e lhes deixaram à mostra a base granítica ou calcárea. Profundos vales foram cavados, enquanto outros eram aterrados.

Logo, há montanhas diretamente formadas pelo fogo central: 106 – Allan Kardec

principalmente as graníticas; outras, devidas à ação das águas que, arrastando as terras móveis e as matérias solúveis, cavaram vales em torno de uma base resistente, calcárea, ou de outra natureza.

As matérias carreadas pelas correntes d’água formaram as camadas do período terciário, que facilmente se distinguem das dos precedentes, menos pela composição, que é quase a mesma, do que pela disposição.

As camadas dos períodos primário, de transição e secundário – formadas sobre uma superfície pouco acidentada – são mais ou menos uniformes na Terra toda; as do período terciário, formadas, ao invés, sobre base muito desigual e pela ação carreadora das águas, apresentam caráter mais local. Por toda parte, fazendo-se escavações de certa profundidade, encontram-se todas as camadas anteriores, na ordem em que se formaram, ao passo que não se encontra por toda parte o terreno terciário, nem todas as suas camadas.

40. Durante os reviramentos do solo ocorridos no princípio deste período, a vida orgânica teve que ficar estacionária por algum tempo – como é fácil de compreendermos apenas examinando terrenos sem fósseis. Porém, desde que veio um estado mais calmo, reapareceram os vegetais e os animais. Estando mudadas as condições de vitalidade, mais depurada a atmosfera, novas espécies com organização mais perfeita se formaram. Sob o ponto de vista da estrutura, as plantas diferem pouco das de hoje.

41. No correr dos dois períodos precedentes, eram pouco extensos os terrenos que as águas não cobriam; eram, ainda assim, pantanosos e com frequência ficavam submersos. Essa a razão por que só havia animais aquáticos ou anfíbios. O período terciário, no qual vários continentes se formaram, caracterizou-se pelo aparecimento dos animais terrestres.

Assim como o período de transição assistiu ao nascimento de uma vegetação colossal, o período secundário ao de reptis monstruosos, também o terciário presenciou o de gigantescos mamíferos, como o elefante, o rinoceronte, o hipopótamo, o paleotério, o megatério, o dinotério, o mastodonte, o mamute, etc. Estes dois últimos, variedades do elefante, tinham de 5 a 6 metros de altura e suas defesas chegavam a 4 metros de comprimento. Esse período também assistiu ao nascimento dos pássaros, bem como à maioria das espécies animais que ainda hoje existem. Algumas, das dessa época, sobreviveram aos cataclismos posteriores; outras, qualificadas genericamente de animais antediluvianos, desapareceram completamente, ou foram substituídas por espécies similares, de formas menos pesadas e menos maciças, cujos primeiros tipos foram como que esboços. Tais o felis speloea, animal carnívoro do tamanho de um touro, com os caracteres anatômicos do tigre e do leão; o cervus megaceron, variedade do cervo, cujos chifres, compridos de 3 metros, eram espaçados de 3 a 4 nas extremidades. 107 – A GÊNESE

PERÍODO DILUVIANO

42. Este período foi marcado por um dos maiores cataclismos que reviraram o globo, quando o aspecto da superfície mudou mais uma vez, destruindo uma imensidade de espécies vivas, das quais restam apenas despojos. Por toda a parte deixou traços que atestam a sua generalidade. As águas, violentamente arremessadas fora dos respectivos leitos, invadiram os continentes, arrastando consigo as terras e os rochedos, desnudando as montanhas, desarraigando as florestas seculares. Os novos depósitos que elas formaram são designados, em Geologia, pelo nome de terrenos diluvianos.

43. Um dos vestígios mais significativos desse grande desastre são os penedos96 chamados blocos erráticos. Assim são chamados os rochedos de granito que se encontram isolados nas planícies, repousando sobre terrenos terciários e no meio de terrenos diluvianos, algumas vezes a muitas centenas de léguas das montanhas donde foram arrancados. É claro que só a violência das correntes pôde transportá-los a tão grandes distâncias.97

96 Penedo: grande massa de rocha expostas nas encostas, no alto de um morro ou ainda nos mares e no leito de rios e lagos – N. D.

97 Um desses blocos, evidentemente provindo, pela sua composição, das montanhas da Noruega, serve de pedestal à estátua de Pedro, o Grande, em S. Petersburgo.

98 Em 1771, o naturalista russo Pallas encontrou nos gelos do Norte o corpo inteiro de um mamute revestido da pele e conservando parte das suas carnes. Em 1799, descobriu-se outro, igualmente encerrado num enorme bloco de gelo, na embocadura do Lena, na Sibéria, e que foi descrito pelo naturalista Adams. Os iacutos das circunvizinhanças lhe despedaçaram as carnes para alimentar seus cães. A pele se achava coberta de pelos negros e o pescoço guarnecia-o espessa crina. A cabeça sem as defesas, que mediam mais de 4 metros, pesava mais de 200 quilos. Seu esqueleto está no museu de S. Petersburgo. Nas ilhas e nas bordas do mar glacial encontra- -se tão grande quantidade de defesas, que elas fazem objeto de considerável comércio, sob o nome de marfim fóssil ou da Sibéria.

44. Outro fato não menos característico, de causa ainda não conhecida, é que os primeiros aerólitos só se encontram nos terrenos diluvianos. Como somente nessa época eles começaram a cair, cremos que a causa que os produz não existia anteriormente.

45. Foi também por essa época que os polos começaram a se cobrir de gelo e que se formaram as geleiras das montanhas, o que indica notável mudança na temperatura da Terra, mudança que deve ter sido súbita, porque se caso houvesse operado gradualmente, os animais teriam tido de se retirar pouco a pouco para as regiões mais temperadas – como os elefantes, que hoje só vivem nos climas quentes e que são encontrados em tão grande número no estado fóssil nas terras polares. Ao contrário, tudo mostra que eles provavelmente foram colhidos de surpresa por um grande frio e sitiados pelos gelos.98

46. Pois então, esse foi o verdadeiro dilúvio universal. As opiniões se dividem proporcionalmente às causas que devam tê-lo produzido. Mas, quaisquer que elas sejam, o que é certo é que o fato aconteceu.

A suposição mais aceita é a de que a posição do eixo e dos polos da 108 – Allan Kardec

Terra sofreu uma brusca mudança; daí uma projeção geral das águas sobre a superfície. Se a mudança se houvesse processado lentamente, a retirada das águas teria sido gradual, sem abalos, no passo que tudo indica uma comoção violenta e repentina. Como não sabemos a verdadeira causa, temos que ficar no campo das hipóteses.

O deslocamento súbito das águas também pode ter ocasionado o levantamento de certas partes da crosta sólida e a formação de novas montanhas dentro dos mares, conforme se verificou em começo do período terciário. Mas, além de que, então, o cataclismo não teria sido geral, isso não explicaria a mudança subitânea da temperatura dos polos.

47. Na tormenta determinada pelo deslocamento das águas, muitos animais desapareceram; outros, a fim de escaparem à inundação, se retiraram para os lugares altos, para as cavernas e fendas, onde faleceram em massa – ou de fome, ou devorando-se uns aos outros, ou ainda, talvez, pela irrupção das águas nos sítios onde se tinham refugiado e donde não puderam fugir. Assim se explica a grande quantidade de ossadas de animais diversos, carnívoros e outros, que são encontrados de mistura em certas cavernas, que por essa razão foram chamadas brechas ou cavernas ossosas. São encontradas as mais das vezes sob as estalagmites. Em algumas dessas cavernas, as ossadas parecem ter sido arrastadas para ali pela correnteza das águas.99

99 Grande número de cavernas semelhantes são conhecidas, algumas de enorme extensão. Existem várias no México, de muitas léguas. A de Aldesberg, em Carniola (Áustria), tem nada menos de três léguas. Uma das mais notáveis é a de Gailenreuth, no Würtemberg. Há muitas delas na França, na Inglaterra, na Alemanha, na Itália (Sicília) e outros países da Europa.

PERÍODO PÓS-DILUVIANO, OU ATUAL - NASCIMENTO DO HOMEM

48. Uma vez restabelecido o equilíbrio na superfície do planeta, prontamente a vida vegetal e animal retomou o seu curso. Já consolidado, o solo assumiu uma colocação mais estável; o ar, já purificado, tornou-se apropriado a órgãos mais delicados. O Sol, brilhando em todo o seu esplendor através de uma atmosfera límpida, difundia com a luz um calor menos sufocante e mais vivificador do que o da fornalha interna. A Terra se povoava de animais menos ferozes e mais sociáveis; mais suculentos, os vegetais proporcionavam alimentação menos grosseira; enfim, tudo se achava preparado no planeta para o novo hóspede que viria habitá-lo. Apareceu então o homem – último ser da criação, aquele que dali em diante contribuiria com sua inteligência para o progresso geral e para a evolução dele próprio.

49. O homem só terá existido na Terra depois do período diluviano, ou terá surgido antes dessa época? Esta é uma questão muito controvertida hoje, mas cuja solução – seja qual for – nada mudará no conjunto dos fatos verificados, nem fará que o aparecimento da espécie humana não seja anterior, de muitos 109 – A GÊNESE

milhares de anos, à data que a Gênese bíblica marcou.

O que fez com que acreditássemos que o surgimento dos homens ocorreu posteriormente ao dilúvio foi o fato de se não ter achado vestígio autêntico da sua existência no período anterior. As ossadas descobertas em diversos lugares e que geraram a crença na existência de uma raça de gigantes antediluvianos foram reconhecidas como de elefantes.

O que está fora de dúvida é que não existia o homem, nem no período primário, nem no de transição, nem no secundário, não só porque nenhum traço dele foi descoberto, como também porque não havia condições de vida para ele. Se o seu aparecimento se deu no terciário, só pode ter sido no fim do período e bem pouco então ele há de ter se multiplicado.

Além do mais, por ter sido curto, o período anterior ao dilúvio não determinou mudanças notáveis nas condições atmosféricas, tanto que os animais eram os mesmos, antes e depois dele; logo, não é impossível que o aparecimento do homem tenha sido antes desse grande cataclismo; hoje está comprovada a existência do macaco naquela época e recentes descobertas parecem confirmar a do homem100.

100 Veja: ―O HOMEM ANTEDILUVIANO‖ e “OS INSTRUMENTOS DE PEDRA, Boucher de Perthes; ―DISCURSO SOBRE AS REVOLUÇÕES DO GLOBO‖, por Jorge Cuvier, anotado pelo Dr. Hoefer.

Como quer que seja, tenha o homem aparecido ou não antes do grande dilúvio universal, o que é certo é que o seu papel humanitário começou a ser esboçado somente no período pós-diluviano. Portanto, podemos considerar esse período caracterizado pela sua presença. 110 – Allan Kardec

CAPÍTULO VIII

TEORIAS SOBRE A FORMAÇÃO DA TERRA

TEORIA DA PROJEÇÃO

TEORIA DA CONDENSAÇÃO

TEORIA DA INCRUSTAÇÃO

ALMA DA TERRA

 

TEORIA DA PROJEÇÃO

1. De todas as teorias referentes à origem da Terra, a que alcançou mais aceitação nestes últimos tempos é a de Buffon101 – seja pela posição que ele desfrutava no mundo sábio, seja pela razão de não se saber mais do que ele disse naquela época.

101 Georges-Louis Leclerc, conde de Buffon (1707-1788): cientista francês, um dos pioneiros no estudo da origem das espécies – N. D.

Vendo que todos os planetas se movem na mesma direção – do ocidente para o oriente – e no mesmo plano, a percorrer órbitas cuja inclinação não passa de 7 graus e meio, Buffon concluiu por essa uniformidade que eles hão de ter sido postos em movimento pela mesma causa.

De igual ponto de vista, formulou a suposição de que, sendo o Sol uma massa incandescente em fusão, um cometa se tenha chocado com ele e, raspando a superfície solar, tenha destacado desta uma porção que – projetada no espaço pela violência do choque – se dividiu em muitos fragmentos, formando esses fragmentos os planetas, que continuaram a se mover circularmente, pela combinação das forças centrífuga e centrípeta, no sentido dado pela direção do choque primitivo, isto é, no plano da eclíptica.

Assim, os planetas seriam partes da substância incandescente do Sol e, por conseguinte, também teriam sido incandescentes, em sua origem. Levaram para se resfriar e consolidar tempo proporcionado aos seus volumes respectivos e, quando a temperatura o permitiu a vida lhes despontou na superfície.

Em virtude do gradual abaixamento do calor central, a Terra chegaria, ao cabo de certo tempo, a um estado de resfriamento completo; a massa líquida se congelaria inteiramente e o ar, cada vez mais condensado, acabaria por desaparecer. O abaixamento da temperatura, tornando impossível a vida, 111 – A GÊNESE

acarretaria a diminuição, depois o desaparecimento de todos os seres organizados. Tendo começado pelos polos, o resfriamento pouco a pouco ganharia todas as regiões, até ao Equador.

Segundo Buffon, tal é o estado atual da Lua que, sendo menor do que a Terra, seria hoje um mundo extinto, do qual a vida se acha para sempre excluída. O próprio Sol viria a ter a mesma sorte afinal. De acordo com os seus cálculos, a Terra teria gasto cerca de 74.000 anos para chegar à sua temperatura atual e dentro de 93.000 anos veria o fim da existência da Natureza organizada.

2. Contraditada pelas novas descobertas da Ciência, a teoria de Buffon está presentemente abandonada quase de todo pelas razões seguintes:

1º Durante longo tempo, acreditou-se que os cometas eram corpos sólidos, cujo encontro com um planeta podia ocasionar a destruição deste último. Nessa hipótese, a suposição de Buffon não tinha nada de improvável. Porém agora, sabemos que os cometas são formados de uma matéria gasosa, bastante rarefeita para que se possam perceber estrelas de grandeza média através de seus núcleos. Nessas condições, oferecendo menos resistência do que o Sol, é impossível que, num choque violento com este, eles sejam capazes de arremessar ao longe qualquer porção da massa solar.

2º A natureza incandescente do Sol é também uma hipótese que até o presente não está confirmada, que ao contrário, parecem desmentidas pelas observações. Se bem ainda não haja certeza quanto à sua natureza, os poderosos meios de observação de que hoje a Ciência dispõe têm permitido que ele seja melhor estudado, de modo a admitirmos, em geral, que é um globo composto de matéria sólida, cercada de uma atmosfera luminosa, ou fotosfera, que não se acha em contato com a sua superfície102.

102 A completa dissertação sobre a natureza do Sol e dos cometas à altura da ciência moderna encontramos em ―ESTUDOS E LEITURAS SOBRE A ASTRONOMIA‖, de Camilo Flammarion.

103 Os planetoides Juno, Ceres e Palas, bem como centenas de outros, estão localizados entre as órbitas de Júpiter e Marte – N. E.

104 Jean-Baptiste Joseph Fourier (1768-1830) físico e matemático francês – N. D.

3º No tempo de Buffon, só se conheciam os seis planetas de que os antigos eram conhecedores: Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter e Saturno. Descobriram-se depois outros em grande número, três dos quais – principalmente Juno, Ceres e Palas – têm suas órbitas inclinadas de 13, 10 e 34 graus, o que não concorda com um movimento único de projeção103.

4º Reconheceram-se absolutamente inexatos os cálculos de Buffon acerca do resfriamento, desde que Fourier104 descobriu a lei do decrescimento do calor. A Terra não precisou apenas de 74.000 anos para chegar à sua temperatura atual, mas de alguns milhões de anos.

5º Buffon unicamente considerou o calor central da Terra, sem levar em conta o dos raios solares. Ora, sabemos hoje – pelos dados científicos de rigorosa precisão obtidos pela experiência – que em virtude da espessura da crosta terrestre, o calor interno do globo não contribui há muito tempo, senão em parcela insignificante, para a temperatura da superfície exterior. São 112 – Allan Kardec

periódicas as variações que essa temperatura sofre e devidas à ação preponderante do calor solar (ver cap. VII, nº 25). Permanente que é o efeito dessa causa, ao passo que o do calor central é nulo, ou quase nulo, a diminuição deste não pode trazer à superfície da Terra sensíveis modificações. Para que a Terra se tornasse inabitável pelo resfriamento, seria necessária a extinção do Sol.105

105 Para maiores esclarecimentos sobre este assunto e sobre a lei do decrescimento do calor, veja ―CARTAS ACERCA DAS REVOLUÇÕES DO GLOBO‖, pelo Dr. Bertrand, ex-aluno da Escola Politécnica de Paris, carta II. Esta obra – à altura da ciência moderna – escrita com simplicidade e sem vaidade intelectual, contém um estudo geológico de grande interesse.

106 Miguel de Figagnères, autor da ―CHAVE DA VIDA‖.

TEORIA DA CONDENSAÇÃO

3. A teoria da formação da Terra pela condensação da matéria cósmica é a que hoje prevalece na Ciência, como sendo a que a observação melhor justifica, a que resolve maior número de dificuldades e que se apoia mais do que todas as outras no grande princípio da unidade universal. É a que deixamos exposta acima, no cap. VI: Uranografia geral.

Como se vê, estas duas teorias conduzem ao mesmo resultado: estado primitivo, de incandescência, do globo; formação de uma crosta sólida pelo resfriamento; existência do fogo central e aparecimento da vida orgânica, logo que a temperatura a tornou possível. No entanto, diferencia em pontos essenciais e é provável que se Buffon vivesse atualmente adotaria outras ideias.

A Geologia toma a Terra no ponto em que é possível a observação direta. Por estar fora da observação, seu estado anterior só pode ser hipotético. Ora, entre duas hipóteses, o bom-senso diz que devemos preferir a que a lógica ratifica e que mais se mostra de acordo com os fatos observados.

TEORIA DA INCRUSTAÇÃO

4. Falamos desta teoria apenas para não deixar de mencioná-la, já que nada tem de científica, mas que, entretanto, conseguiu certa repercussão nos últimos tempos e seduziu algumas pessoas. Está resumida na carta seguinte:

“Segundo a Bíblia, Deus criou o mundo em seis dias, quatro mil anos antes da era cristã. Os geólogos contestam essa afirmativa firmados no estudo dos fósseis e dos milhares de caracteres incontestáveis e respeitáveis que colocam a origem da Terra a milhões de anos. Entretanto, a Escritura disse a verdade e também os geólogos. E foi um simples camponês106 quem os pôs de acordo ensinando que o nosso globo não é mais do que um planeta incrustativo, muito moderno, composto de materiais muito antigos.

“Após o arrebatamento do planeta desconhecido, que chegou à maturidade, ou de harmonia com o que existiu no lugar que hoje ocupamos, a 113 – A GÊNESE

alma da Terra recebeu ordem de reunir seus satélites para formar a Terra atual, segundo as regras do progresso em tudo e por tudo. Apenas quatro desses astros concordaram com a associação que lhes era proposta. Só a Lua persistiu na sua autonomia, visto que também os globos têm o seu livre-arbítrio. Para proceder a essa fusão, a alma da Terra dirigiu aos satélites um raio magnético atrativo, que pôs em estado cataléptico todo o mobiliário vegetal, animal e hominal107 que eles possuíam e que trouxeram para a comunidade. A operação teve por únicas testemunhas a alma da Terra e os grandes mensageiros celestes que a ajudaram nessa grande obra, abrindo aqueles globos para lhes dar entranhas comuns. Praticada a soldagem, as águas se escoaram para os vazios que a ausência da Lua deixara. As atmosferas se confundiram e começou o despertar ou a ressurreição das sementes que estavam em paralisação. O homem foi o último a ser tirado do estado de hipnotismo e se viu cercado da luxuriante vegetação do paraíso terrestre e dos animais que pastavam em paz ao seu derredor. Tudo isto se podia fazer em seis dias, com obreiros tão poderosos como os que Deus encarregara da tarefa. O planeta Ásia trouxe a raça amarela, a de civilização mais antiga; da África veio a raça negra; da Europa a raça branca e da América veio a raça vermelha.

107 Hominal: relativo à forma humana – N. D.

“Assim, certos animais – dos quais só encontramos os restos – nunca teriam vivido na Terra atual, mas teriam sido transportados de outros mundos desmanchados pela velhice. Os fósseis, que se encontram em climas sob os quais não teriam podido existir neste mundo, viviam sem dúvida em zonas muito diferentes nos globos onde nasceram. Tais restos na Terra se encontram nos polos, ao passo que os animais viviam no Equador dos globos a que pertenciam”.

5. Esta teoria tem contra si os mais positivos dados da ciência experimental, além de não solucionar a questão mesma que ela pretende resolver, a questão da origem. É certo que diz como a Terra teria se formado, mas não diz como se formaram os quatro mundos que se reuniram para constituí-la.

Se as coisas tivessem ocorrido assim, como se explicaria a inexistência absoluta de quaisquer vestígios daquelas imensas soldas, apesar de terem ido até às entranhas do globo? Cada um daqueles mundos – Ásia, África, Europa e América – que se pretende haverem trazido os materiais que lhes eram próprios, teria uma geologia particular, diferente da dos demais, o que não é exato. Ao contrário, vê-se, primeiramente, que o núcleo granítico é uniforme, de composição homogênea em todas as partes do globo, sem solução de continuidade. Depois, as cama das geológicas se apresentam de formação igual, idênticas quanto à constituição, superpostas, em toda parte, na mesma ordem, contínuas, sem interrupção, de um lado a outro dos mares, da Europa à Ásia, à África, à América, e reciprocamente. Essas camadas – que dão testemunho das transformações do globo – atestam que tais transformações se operaram em toda a sua superfície e não apenas numa porção desta; mostram os períodos de 114 – Allan Kardec

aparecimento, existência e desaparecimento das mesmas espécies animais e vegetais, nas diferentes partes do mundo, igualmente; mostram a fauna e a flora desses períodos recuados a marcharem simultaneamente por toda parte, sob a influência de uma temperatura uniforme, e a mudar por toda parte de caráter, à medida que a temperatura se modifica. Semelhante estado de coisas não se concilia com a formação da Terra por soma de muitos mundos diferentes.

Ao demais, é de se perguntar o que teria sido feito do mar, que ocupa o vazio deixado pela Lua, se esta não se houvesse recusado a se reunir às suas irmãs. Que aconteceria à Terra atual se um dia a Lua tivesse a fantasia de vir tomar o seu lugar, expulsando o mar deste?

6. Semelhante teoria seduziu algumas pessoas porque parecia explicar a presença das diferentes raças de homens na Terra e a localização delas. Mas, uma vez que essas raças puderam se espalhar por diferentes mundos, por que não teriam podido se desenvolver em pontos diversos do mesmo globo? Isso é querer resolver uma dificuldade por meio de outra dificuldade maior. Efetivamente, quaisquer que fossem a rapidez e a destreza com que a operação se praticasse, aquela soma não se houvera podido realizar sem violentos abalos. Quanto mais rápida ela fosse, tanto mais desastrosos haviam de ser os cataclismos. Pois, parece impossível que seres apenas mergulhados em sono paralítico tenham podido resistir-lhes, para em seguida despertarem tranquilamente. Se fossem unicamente sementes, em que consistiriam? Como é que seres inteiramente formados se reduziriam ao estado de germens? Restaria sempre a questão de sabermos como esses germens novamente se desenvolveram. Ainda aí, teríamos a Terra a se formar por processo miraculoso, processo esse menos poético e menos grandioso do que o da Gênese bíblica, enquanto que as leis naturais dão uma explicação da sua formação muito mais completa e, sobretudo, mais racional, deduzida da observação.108

108 Quando tal teoria se liga a toda uma cosmogonia, é de perguntarmos sobre que base racional o resto pode se assentar. A concordância que, por meio desse sistema, se pretende estabelecer, entre a Gênese bíblica e a Ciência, é inteiramente ilusória, pois que a própria Ciência o contradiz. O autor da carta acima – homem de grande saber –, um instante seduzido por essa teoria, logo lhe descobriu os lados vulneráveis e não tardou a combatê-la com as armas da Ciência.

ALMA DA TERRA

7. A alma da Terra desempenhou papel principal na teoria da incrustação. Vejamos se esta ideia tem melhor fundamento.

O desenvolvimento orgânico está sempre em relação com o desenvolvimento do princípio intelectual. O organismo se completa à medida que as capacidades da alma se multiplicam. A escala orgânica acompanha constantemente a progressão da inteligência em todos os seres – desde o pólipo até o homem, e não podia ser de outro modo, pois que a alma precisa de um instrumento apropriado à importância das funções que lhe compete desempenhar. De que serviria à ostra possuir a inteligência do macaco, sem os 115 – A GÊNESE

órgãos necessários para sua manifestação? Portanto, se a Terra fosse um ser animado, servindo de corpo a uma alma especial, essa alma teria de ser ainda mais rudimentar do que a do pólipo, por efeito mesmo da sua constituição, visto que a Terra não tem sequer a vitalidade da planta, ao passo que, pelo papel que lhe atribuíram à alma, fizeram dela um ser dotado de razão e do mais completo livre-arbítrio, em resumo: como um Espírito superior – o que não é racional, porque nunca nenhum Espírito se achou menos bem repartido, nem mais aprisionado. Neste sentido ampliada, então a ideia da alma da Terra tem de ser arrolada entre as concepções sistemáticas e ilusórias.

Por “alma da Terra”, podemos entender mais racionalmente a coletividade dos Espíritos incumbidos da elaboração e da direção de seus elementos constitutivos, o que já supõe certo grau de desenvolvimento intelectual; ou, melhor ainda: o Espírito a quem está confiada a alta direção dos destinos morais e do progresso de seus habitantes, missão que somente pode ser atribuída a um ser eminentemente superior em saber e em sabedoria. Em tal caso, esse Espírito não é propriamente falando a alma da Terra, porque não se acha encarnado nela, nem subordinado ao seu estado material. É um chefe preposto ao seu governo, como um general é ao comando de um exército.

Um Espírito, incumbido de missão tão importante qual a do governo de um mundo, não poderia ter caprichos, ou então teríamos de reconhecer em Deus a imprevidência de confiar a execução de Suas leis a seres capazes de lhes contravir, a seu bel-prazer. Ora, segundo a doutrina da incrustação, a má vontade da alma da Lua é que tinha dado causa a que a Terra ficasse incompleta. Há ideias que anulam a si mesmas (“REVISTA ESPÍRITA”, de setembro de 1868, pág. 261). 116 – Allan Kardec

CAPÍTULO IX

REVOLUÇÕES DO GLOBO

REVOLUÇÕES GERAIS E PARCIAIS

IDADE DAS MONTANHAS

DILÚVIO PÚBLICO

REVOLUÇÕES PERIÓDICAS

CATACLISMOS FUTUROS

AUMENTO OU DIMINUIÇÃO DO VOLUME DA TERRA

 

REVOLUÇÕES GERAIS OU PARCIAIS

1. Os períodos geológicos marcam as fases do aspecto geral do globo, em consequência das suas transformações. Mas, com exceção do período diluviano – que se caracterizou por uma subversão repentina –, todos os demais transcorreram lentamente, sem transições bruscas. Durante todo o tempo que os elementos constitutivos do globo levaram para tomar suas posições definitivas, as mutações houveram de ser gerais. Uma vez consolidada a base, só se devem ter produzido modificações parciais, na superfície.

2. Além das revoluções gerais, a Terra experimentou grande número de perturbações locais que mudaram o aspecto de certas regiões. Como no tocante às outras, duas causas contribuíram para essas perturbações: o fogo e a água.

O fogo atuou produzindo: ou erupções vulcânicas que sepultaram os terrenos próximos para baixo de grossas camadas de cinzas e lavas, fazendo desaparecer cidades com seus habitantes; ou terremotos; ou levantamentos da crosta sólida, que impeliam as águas para as regiões mais baixas; ou o afundamento, em maior ou menor extensão, dessa mesma crosta, nalguns lugares, para onde as águas se precipitaram, deixando outros lugares a seco. Foi assim que surgiram ilhas no meio do oceano, enquanto que outras desapareceram; que porções de continentes se separaram e formaram ilhas; que braços de mar, secados, ligaram ilhas e continentes.

Quanto à água, essa atuou produzindo: ou o transbordamento ou a retirada do mar em algumas costas; ou desmoronamentos que formaram lagos pela interceptação de correntes líquidas; ou transbordamentos e inundações; ou, enfim, aterros nas embocaduras dos rios. Esses aterros, rechaçando o mar, criaram novos territórios. Tal a origem do delta do Nilo, ou Baixo Egito; do delta do Ródano, ou Camarga. 117 – A GÊNESE

IDADE DAS MONTANHAS

3. Examinando os terrenos dilacerados pelo erguimento das montanhas e das camadas que lhes formam os contrafortes, se torna possível determinar sua idade geológica. Por “idade geológica das montanhas” não devemos entender o número de anos que elas contam de existência, mas o período em que se formaram e, portanto, o relativo tempo de existência que apresentam. Seria errado acreditarmos que semelhante tempo corresponde à elevação que lhes é própria, ou à natureza exclusivamente granítica que revelem, uma vez que a massa de granito, ao dar-se o seu levantamento, pode ter perfurado e separado as camadas superpostas.

Assim ficou comprovado – por meio da observação científica – que as montanhas dos Vosges, da Bretanha e da Côte-d’Or, na França (que não são muito elevadas) pertencem às mais antigas formações. Datam do período de transição, senão anteriores aos depósitos de carvão. O Jura se formou no meado do período secundário; é contemporâneo dos reptis gigantes. Os Pirineus se formaram mais tarde, no começo do período terciário. O Monte Branco e o grupo dos Alpes ocidentais são posteriores aos Pirineus e datam da metade do período terciário. Os Alpes orientais, que compreendem as montanhas do Tirol, são ainda mais recentes, porque só se formaram pelos fins desse mesmo período. Algumas montanhas da Ásia são mesmo posteriores ao período diluviano, ou lhe são contemporâneas.

Esses levantamentos hão de ter ocasionado grandes perturbações locais e inundações mais ou menos consideráveis, pelo deslocamento das águas, pela interrupção e mudança do curso dos rios109.

109 O século passado registrou notável exemplo de um fenômeno desse gênero. A seis dias de marcha da cidade de México, existia, em 1750, uma região fértil e bem cultivada, onde davam em abundância arroz, milho e bananas. No mês de junho, pavorosos tremores de terra abalaram o solo, renovando-se continuamente durante dois meses inteiros. Na noite de 28 para 29 de setembro, violenta convulsão se produziu; um território de muitas léguas de extensão entrou a erguer-se pouco a pouco e acabou por alcançar a altitude de 500 pés, numa superfície de 10 léguas quadradas. O terreno ondulava, como as vagas do mar ao sopro da tempestade, milhares de montículos se elevavam e afundavam alternativamente; afinal, abriu-se um abismo de perto de 3 léguas, donde eram lançados à prodigiosa altura fumo, fogo, pedras esbraseadas e cinzas. Seis montanhas surgiram desse abismo hiante, entre as quais o vulcão a que foi dado o nome de Jorullo, que agora se eleva a 550 metros acima da antiga planície. No momento em que principiaram os abalos do solo, os dois rios Cuitimba e San Pedro, refluindo, inundaram toda a planície hoje ocupada pelo Jorullo; no terreno, porém, que sem cessar se elevava, outro sorvedouro se abriu e os absorveu. Os dois reapareceram mais tarde, a oeste, num ponto muito afastado de seus antigos leitos. (Luiz Figuier, ―A TERRA ANTES DO DILÚVIO‖, pág. 370).

DILÚVIO BÍBLICO

4. O dilúvio bíblico – também conhecido pela denominação de “grande dilúvio asiático” – é um fato que a realidade não pode contestar. Deve ter sido ocasionado pelo levantamento de uma parte das montanhas daquela região, como o do México. Confirma esta opinião a existência de um mar interior, que antes ia do mar Negro ao oceano Boreal, comprovada pelas observações 118 – Allan Kardec

geológicas. O mar de Azov, o mar Cáspio, cujas águas são salgadas, embora não tenham nenhuma comunicação com qualquer outro mar; o lago Aral e os inúmeros lagos espalhados pelas imensas planícies da Tartália e as estepes da Rússia parecem restos daquele antigo mar. Por ocasião do levantamento das montanhas do Cáucaso, posterior ao dilúvio universal, parte daquelas águas foi recalcada para o norte, na direção do oceano Boreal; outra parte, para o sul, em direção ao oceano Índico. Estas inundaram e devastaram precisamente a Mesopotâmia e toda a região em que habitaram os antepassados do povo hebreu. Embora esse dilúvio se tenha estendido por uma superfície muito grande, atualmente é certo que ele foi apenas local; que não pode ter sido causado pela chuva, pois, por muito copiosa que fosse essa chuva e ainda que se prolongasse por quarenta dias, o cálculo prova que a quantidade d’água caída das nuvens não podia bastar para cobrir toda a terra, até acima das mais altas montanhas.

Para os homens de então, que não conheciam mais do que uma extensão muito limitada da superfície do globo e que nenhuma ideia tinham da sua configuração, desde que a inundação invadiu os países conhecidos, a Terra inteira teria sido invadida para eles. Se a essa crença somarmos a forma imaginosa e exagerada da descrição, forma peculiar ao estilo oriental, já não nos surpreenderá o exagero da narração bíblica.

5. O dilúvio asiático foi evidentemente posterior ao aparecimento do homem na Terra, visto que a lembrança dele se conservou pela tradição em todos os povos daquela parte do mundo, os quais o consagraram em suas teogonias110.

110 A lenda indiana sobre o dilúvio refere, segundo o livro dos Vedas, que Brama (transformado em peixe) se dirigiu ao piedoso monarca Vaivaswata e lhe disse: ―Chegou o momento da dissolução do Universo; em breve estará destruído tudo o que existe na Terra. Tens que construir um navio em que embarcarás, depois de teres embarcado sementes de todos os vegetais. Tu me esperará nesse navio e eu virei ter contigo, trazendo à cabeça um chifre pelo qual me reconhecerás‖. O santo obedeceu; construiu um navio, embarcou nele e o atou por um cabo muito forte ao chifre do peixe. O navio foi rebocado durante muitos anos com extrema rapidez, por entre as trevas de uma tremenda tempestade, abordando, afinal, ao cume do monte Himawat (Himalaia). Brama ordenou em seguida a Vaivaswata que criasse todos os seres e com eles povoasse a Terra.

É flagrante a semelhança desta lenda com a narrativa bíblica de Noé. Da Índia ela passara ao Egito, como uma multidão de outras crenças. Ora, sendo o livro dos Vedas anteriores ao de Moisés, a narração que naquele se encontra, do dilúvio, não pode ser uma cópia da deste último. O que é provável é que Moisés, que aprendera as doutrinas dos sacerdotes egípcios, haja tomado a estes a sua descrição.

É também posterior ao grande dilúvio universal que assinalou o início do atual período geológico. Quando se fala de homens e de animais antediluvianos, a referência é àquele primeiro cataclismo.

REVOLUÇÕES PERIÓDICAS

6. Além do seu movimento anual em torno do Sol (que dá origem às estações), do seu movimento de rotação sobre si mesma em 24 horas (que dá origem ao dia e à noite), a Terra tem um terceiro movimento que se completa em cerca de 25.000 anos, ou, mais exatamente, em 25.868 anos, e que produz o fenômeno 119 – A GÊNESE

denominado, em astronomia precessão dos equinócios111 (cap. V, nº 11). Este movimento, que não se pode explicar em poucas palavras, sem o auxílio de figuras e sem uma demonstração geométrica, consiste numa espécie de oscilação circular, que se há comparado à de um pião a morrer, e por virtude da qual o eixo da Terra, mudando de inclinação, descreve um duplo cone cujo vértice está no centro do planeta, abrangendo as bases desses cones a superfície circunscrita pelos círculos polares, isto é, uma amplitude de 23 e 1/2 graus de raio.

111 Precessão dos equinócios: Ilustrações que exemplificam a teoria – N. D.

112 A precessão dos equinócios ocasiona outra mudança: a que se opera na posição dos signos do zodíaco. Girando a Terra ao derredor do Sol em um ano, à medida que ela avança, o Sol, cada mês, se encontra diante de uma constelação. Estas são em número de doze, a saber: o Carneiro, o Touro, os Gêmeos, o Câncer, o Leão, a Virgem, a Balança, o Escorpião, o Sagitário, o Capricórnio, o Aquário, os Peixes. São chamadas constelações zodiacais, ou signos do zodíaco, e formam um círculo no plano do equador terrestre. Conforme o mês do nascimento de um indivíduo dizia-se que ele nascera sob tal ou tal signo; daí os prognósticos da Astrologia. Mas, em virtude da precessão dos equinócios, acontece que os meses já não correspondem às mesmas constelações. Um que nasça no mês de julho já não está no signo do Leão, porém no do Câncer. Cai assim a ideia supersticiosa da influência dos signos (Cap. V, nº 12).

7. O equinócio é o instante em que o Sol, passando de um hemisfério a outro, se encontra perpendicular ao equador, o que acontece duas vezes por ano, a 21 de março, quando o Sol passa para o hemisfério boreal, e a 22 de setembro, quando volta ao hemisfério austral.

Mas, em consequência da gradual mudança na obliquidade do eixo, o que acarreta outra mudança na inclinação do equador sobre a eclíptica, o momento do equinócio avança cada ano de alguns minutos (25 minutos e 7 segundos). A esse avanço é que se deu o nome de precessão dos equinócios (do latim proecedere, caminhar para diante, composto de proe, adiante e cedere, ir-se).

Com o tempo, esses poucos minutos fazem horas, dias, meses e anos, resultando daí que o equinócio da primavera – que agora se verifica no mês de março –, em dado tempo se verificará em fevereiro, depois em janeiro, depois em dezembro. Então o mês de dezembro terá a temperatura de março e março a de junho e assim por diante, até que, voltando ao mês de março, as coisas se encontrarão de novo no estado atual, o que se dará ao cabo de 25.868 anos, para recomeçar indefinidamente a mesma revolução112. 120 – Allan Kardec

8. Desse movimento cônico do eixo, resulta que os polos da Terra não olham constantemente os mesmos pontos do céu; que a Estrela Polar não será sempre estrela polar; que os polos gradualmente se inclinam mais ou menos para o Sol e recebem dele raios mais ou menos diretos, donde se segue que, por exemplo, a Islândia e a Lapônia (localizadas sob o círculo polar), poderão, em dado tempo, receber raios solares como se estivessem na latitude da Espanha e da Itália e que, na posição do extremo oposto, a Espanha e a Itália poderão ter a temperatura da Islândia e da Lapônia, e assim por diante, a cada renovação do período de 25.000 anos113.

113 O deslocamento gradual das linhas isotérmicas (fenômeno que a Ciência reconhece de modo tão positivo como o do deslocamento do mar) é um fato material que apoia esta teoria.

114 Entre os fatos mais recentes que provam o deslocamento do mar, podem citar-se estes:

No golfo da Gasconha, entre o velho Soulac e a Torre de Cordouan, quando o mar está calmo, percebe-se no fundo da água trechos de muralha: são os restos da antiga e grande cidade de Noviomagus,

9. As consequências deste movimento ainda não puderam ser determinadas com precisão, porque somente temos podido observar uma pequena parte da sua revolução. A respeito disso só há presunções, algumas das quais com caráter de probabilidade.

Essas consequências são:

1ª O aquecimento e o resfriamento alternativos dos polos e, por conseguinte, a fusão dos gelos polares durante a metade do período de 25.000 anos e a nova formação deles durante a outra metade desse período. Resultaria daí não estarem os polos condenados a uma perpétua esterilidade, cabendo-lhes gozar a seu turno dos benefícios da fertilidade.

2ª O deslocamento gradativo do mar, fazendo-o invadir pouco a pouco umas terras e pôr a descoberto outras, para de novo as abandonar, voltando ao seu leito anterior. Esse movimento periódico, indefinidamente renovado, constituiria uma verdadeira maré universal de 25.000 anos.

A lentidão com que se opera esse movimento do mar torna-o quase imperceptível para cada geração. Faz-se, porém, sensível ao fim de alguns séculos. Ele não pode causar nenhum cataclismo súbito porque os homens se retiram, de geração em geração, à proporção que o mar avança, e avançam pelas terras donde o mar se retira. É mais que provável que a essa causa alguns sábios atribuem o afastamento do mar de certas costas e a invasão de outras por ele.

10. O deslocamento demorado, gradual e periódico do mar é fato que a experiência comprova e numerosos exemplos confirmam, em todos os pontos do globo. Tem por efeito o entretenimento das forças produtivas da Terra. A longa imersão é para os terrenos um tempo de repouso, durante o qual eles recuperam os princípios vitais esgotados por uma não menos longa produção. Os imensos depósitos de matérias orgânicas, formados pela permanência das águas durante séculos e séculos, são adubações naturais, periodicamente renovadas, e as gerações se sucedem sem se aperceberem de tais mudanças114. 121 – A GÊNESE

invadida pelas ondas em 580. O rochedo de Cordouan, que se achava então ligado à margem, está agora a 12 quilômetros.

No mar da Mancha, sobre a costa do Havre, as águas dia a dia ganham terreno e minam as penedias de Sainte-Adresse, que pouco a pouco desmoronam. A dois quilômetros da costa entre Sainte-Adresse e o cabo de Hève, existe um banco que outrora se achava à vista e ligado à terra firme. Antigos documentos atestam que nesse lugar, por sobre o qual hoje se navega, existia a aldeia de Saint-Denis-chef-de-Caux. Tendo o mar invadido, no décimo quarto século, o terreno, a igreja foi tragada em 1378. Dizem que, com bom tempo, se lhe veem os restos no fundo do mar.

Em quase toda a extensão do litoral da Holanda, o mar só é contido a poder de diques, que de tempos a tempos se rompem. O antigo lago de Flevo, que se reuniu ao mar em 1225, forma hoje o golfo de Zuyderzée. Essa irrupção do oceano tragou muitas povoações.

Segundo isto, o território de Paris e da França toda seria de novo ocupado pelo mar, como já o foi muitas vezes, conforme o demonstram as observações geológicas. Então, as partes montanhosas formarão ilhas, como o são agora Jersey, Guernesey e a Inglaterra, outrora contíguas ao continente.

Navegaremos por sobre regiões que atualmente se percorrem de caminho de ferro; os navios aportarão a Montmartre, ao monte Valeriano, aos outeiros de Saint-Cloud e de Meudon; os bosques e florestas, agora lugares de passeio, ficarão sepultados nas águas, cobertos de limo e povoados de peixes, que substituirão as aves.

O dilúvio bíblico não pode ter tido essa causa, pois que foi repentina a invasão das águas e de curta duração a permanência delas, ao passo que, de outro modo, essa permanência houvera sido de muitos milhares de anos e ainda duraria, sem que os homens dessem por isso.

115 Telúrico: relativo à terra, ao solo – N. D.

CATACLISMOS FUTUROS

11. As grandes revoluções telúricas115 têm se produzido nas épocas em que a crosta sólida da Terra (pela sua fraca espessura) quase não oferecia nenhuma resistência à efervescência das matérias em ignição no seu interior. Tais comoções foram diminuindo, à proporção que aquela crosta se consolidava. Numerosos vulcões já se acham extintos, outros os terrenos de formação posterior soterraram.

Certamente, poderão produzir-se ainda perturbações locais, por efeito de erupções vulcânicas, da eclosão de alguns vulcões novos, de inundações repentinas de algumas regiões; poderão surgir do mar ilhas e outras poderão ser tragadas por ele; mas, passou o tempo dos cataclismos gerais, como os que assinalaram os grandes períodos geológicos. A Terra adquiriu uma estabilidade que, sem ser absolutamente invariável, coloca doravante o gênero humano ao abrigo de perturbações gerais, a menos que intervenham causas desconhecidas, a ela estranhas e que de modo nenhum se possam prever.

12. Quanto aos cometas, estamos hoje perfeitamente tranquilizados com relação à influência que exercem – que é mais salutar do que prejudicial, por eles parecerem destinados a reabastecer os mundos, se assim nos podemos exprimir, trazendo-lhes os princípios vitais que eles armazenam em sua corrida pelo espaço e com o se aproximarem dos sóis. Assim, pois, seriam antes fontes de prosperidades, do que mensageiros de desgraças.

A natureza fluídica, já bem comprovada (cap. VI, nº 28 e seguintes), que lhes é própria afasta todo receio de choques violentos, porque, se um deles encontrasse a Terra, esta o atravessaria, como se passasse através de um nevoeiro.

Ainda menos de temer é a cauda que arrastam, visto que ela não é mais do que a reflexão da luz solar na imensa atmosfera que os envolve, tanto assim 122 – Allan Kardec

que se mostra constantemente dirigida para o lado oposto ao Sol, mudando de direção conformemente à posição deste astro. Essa matéria gasosa, em virtude da rapidez com que eles caminham, também poderia ser uma espécie de cabeleira, semelhante à esteira deixada por um navio em marcha, ou à fumaça de uma locomotiva. Aliás, muitos cometas já se têm aproximado da Terra, sem lhe causarem qualquer dano. Em virtude das suas respectivas densidades, a Terra exerceria sobre o cometa uma atração maior do que a dele sobre ela. Somente uns restos de velhos preconceitos podem fazer que a presença de um cometa inspire terror116.

116 O cometa de 1861 atravessou a órbita da Terra num ponto do qual esta se achava a uma distância de apenas 20 horas. Portanto, a Terra esteve mergulhada na atmosfera dele, sem que daí resultasse nenhum acidente.

13. Devemos igualmente considerar como fantasiosa a possibilidade do encontro da Terra com outro planeta. A regularidade e a invariabilidade das leis que presidem aos movimentos dos corpos celestes tornam um encontro desse fora de toda probabilidade.

A Terra, no entanto, terá um fim. – Como? – Isso ainda permanece no domínio das conjeturas; mas, visto de ela estar ainda longe da perfeição que pode alcançar e da distância que lhe indicaria o declínio, seus habitantes atuais pedem estar certos de que tal não se dará ao tempo deles. (Cap. VI, nº 48 e seguintes).

14. Fisicamente, a Terra teve as convulsões da sua infância; entrou agora num período de relativa estabilidade: na do progresso pacífico, que se efetua pelo regular retorno dos mesmos fenômenos físicos e pela colaboração inteligente do homem. Porém, ainda está em pleno trabalho de gestação do progresso moral. Aí residirá a causa das suas maiores revoluções. Até que a Humanidade tenha crescido suficientemente em perfeição, pela inteligência e pela observância das leis divinas, as maiores perturbações ainda serão causadas pelos homens, mais do que pela Natureza, isto é, serão antes morais e sociais do que físicas.

AUMENTO OU DIMINUIÇÃO DO VOLUME DA TERRA

15. O volume da Terra aumenta, diminui, ou permanece estacionário?

Para sustentar que o volume da Terra aumenta, alguns se fundamentam na tese de que as plantas dão ao solo mais do que tiram dele, o que, se isso é correto num sentido, não é em outro. As plantas se nutrem tanto e até mais das substâncias gasosas que absorvem na atmosfera, quanto das que sugam pelas raízes. Ora, a atmosfera faz parte integrante do globo; os gases que a constituem vêm da decomposição dos corpos sólidos e estes, recompondo-se, retomam o que lhe haviam dado. É uma troca, ou, antes, uma perpétua transformação, de maneira que, operando-se o crescimento deles com o auxílio 123 – A GÊNESE

dos elementos constitutivos do globo, os restos dos vegetais e dos animais – por muito consideráveis que sejam – não aumentam sua massa em um só átomo. Por essa causa, se a parte sólida do globo terrestre aumentasse de modo permanente, isso se daria à custa da atmosfera, que diminuiria de outro tanto e acabaria por se tornar imprópria à vida, se não recuperasse, pela decomposição dos corpos sólidos, o que perde pela composição deles.

Na origem da Terra, as primeiras camadas geológicas se formaram das matérias sólidas momentaneamente volatilizadas, por efeito da alta temperatura, e que, condensadas mais tarde pelo resfriamento, se dilataram. Incontestavelmente, elas elevaram um pouco a superfície do solo, mas sem acrescentarem coisa alguma à massa total, pois que ali apenas havia um deslocamento de matéria. Quando expurgada dos elementos que continha em suspensão, a atmosfera se encontrou no estado normal, as coisas tomaram o curso regular em que depois seguiram. Hoje, a menor modificação na constituição da atmosfera acarretaria obrigatoriamente a destruição dos atuais habitantes da Terra; mas, também é provável que novas raças se formassem noutras condições.

Considerada desse ponto de vista, a massa do globo – isto é, a soma das moléculas que compõem o conjunto de suas partes sólidas, líquidas e gasosas – é incontestavelmente a mesma, desde a sua origem. Se o globo experimentasse uma dilatação ou uma condensação, seu volume aumentaria ou diminuiria, sem que a massa sofresse qualquer alteração. Portanto, se a Terra aumentasse de massa, o fato seria efeito de uma causa estranha, pois que ela não poderia tirar de si mesma os elementos necessários ao seu aumento.

Há uma opinião segundo a qual o globo aumentaria de massa e de volume pela enchente da matéria cósmica interplanetária. Esta ideia nada tem de irracional, mas é bastante incerta para ser admitida em princípio. Não passa de uma hipótese combatida por teorias contrárias, sobre as quais a Ciência ainda não estabeleceu nada. Sobre isso, eis aqui a opinião do eminente Espírito que ditou os sábios estudos uranográficos descritos lá atrás, no capítulo VI:

“Os mundos se esgotam pelo envelhecimento e tendem a se dissolver para servir de elementos de formação a outros universos. Pouco a pouco, restituem ao fluido cósmico universal do espaço o que tiraram dele para se formar. Além disso, todos os corpos se gastam pelo atrito; o movimento rápido e incessante do globo através do fluido cósmico faz sua massa se diminuir constantemente, se bem que de quantidade imperceptível em determinado tempo.117

117 No seu movimento de translação (volta em torno do Sol), a velocidade da Terra é de 400 léguas por minuto. Sendo de 9.000 léguas a sua circunferência, em seu movimento de rotação (volta ao redor do seu eixo), cada ponto do equador percorre 9.000 léguas em 24 horas, ou 6,3 léguas por minuto.

“A meu ver, a existência dos mundos pode ser dividida em três períodos. Primeiro período: condensação da matéria, período esse em que o volume do globo diminui consideravelmente, sendo que a massa se conserva a mesma. É o período da infância. Segundo período: contração, solidificação da crosta; eclosão dos germens, desenvolvimento da vida até à aparição do tipo 124 – Allan Kardec

mais aperfeiçoado. Nesse momento, o globo está em toda a sua plenitude, é a época da fertilidade; ele perde os seus elementos constitutivos, mas muito pouco. À medida que seus habitantes progridem espiritualmente, ele passa ao período de decrescimento material; sofre perdas, não só em consequência do atrito, mas também pela desagregação das moléculas, como uma pedra dura que acaba reduzida a poeira quando corroída pelo tempo. Em seu duplo movimento de rotação e translação, ele entrega ao espaço parcelas fluidificadas da sua substância, até ao momento em que se completa a sua dissolução.

“Mas então, como o poder de atração está na razão direta da massa (não digo do volume), diminuída a massa do globo, modificam-se as suas condições de equilíbrio no espaço. Dominado por planetas mais poderosos, aos quais ele não pode fazer contrapeso, resultam daí desvios nos seus movimentos e, portanto, também profundas mudanças nas condições da vida em sua superfície. Assim, nascimento, vida e morte; ou infância, virilidade, decrepitude são as três fases pelas quais toda aglomeração de matéria orgânica ou inorgânica passa. Indestrutível só é o Espírito, que não é matéria” (Galileu, Sociedade de Paris, 1868). 125 – A GÊNESE

CAPÍTULO X

GÊNESE ORGÂNICA

FORMAÇÃO PRIMÁRIA DOS SERES VIVOS

PRINCÍPIO VITAL

GERAÇÃO ESPONTÂNEA

ESCALA DOS SERES ORGÂNICOS

O HOMEM CORPÓREO

 

FORMAÇÃO PRIMÁRIA DOS SERES VIVOS

1. Houve tempo em que não existiam animais; logo, eles tiveram começo. Cada espécie foi aparecendo, à proporção que o globo adquiria as condições necessárias à existência delas. Isto é real. Como se formaram os primeiros indivíduos de cada espécie? Compreendemos que na existência de um primeiro casal, os indivíduos se multiplicaram. Mas, de onde saiu esse primeiro casal? O princípio das coisas: esse é um dos mistérios sobre os quais apenas podemos formular hipóteses. A Ciência ainda não pode resolver o problema; entretanto, pelo menos pode encaminhá-lo para a solução.

2. Esta é a questão primordial que se apresenta: cada espécie animal saiu de um casal primitivo ou de muitos casais criados, ou, se o preferirem, germinados simultaneamente em diversos lugares?

Esta última suposição é a mais provável. Podemos mesmo dizer ela que ressalta da observação. Com efeito, nos terrenos de idêntica formação, e em proporções enormes, o estudo das camadas geológicas confirma a presença das mesmas espécies em pontos do globo muito afastados uns dos outros. Essa multiplicação tão generalizada e, de certo modo contemporânea, seria impossível com um único tipo primitivo.

De outro modo, a vida de um indivíduo – sobretudo de um indivíduo nascente – está sujeita a tantas eventualidades, que toda uma criação poderia ficar comprometida, sem a variedade dos tipos, o que implicaria um descuido inadmissível da parte do Criador supremo. Aliás, se num ponto, um tipo pode se formar, em muitos outros pontos ele poderia se formar igualmente, por efeito da mesma causa.

Logo, tudo demonstra provar que houve criação simultânea e múltipla dos primeiros casais de cada espécie animal e vegetal.

3. A formação dos primeiros seres vivos pode ser deduzida, por comparação, 126 – Allan Kardec

pela mesma lei pela qual os corpos inorgânicos foram formados e se formam todos os dias. À medida que se aprofunda o estudo das leis da Natureza, as engrenagens que de início pareciam tão complicadas vão se simplificando e confundindo na grande lei de unidade que preside a toda a obra da criação. Isso se compreenderá melhor, quando estiver compreendida a formação dos corpos inorgânicos, que é o degrau primário daquela outra.

4. A Química considera essenciais muitas substâncias, como o oxigênio, o hidrogênio, o azoto, o carbono, o cloro, o iodo, o flúor, o enxofre, o fósforo e todos os metais. Combinando-se, elas formam os corpos compostos: os óxidos, os ácidos, os álcalis, os saís e as inúmeras variedades que resultam da combinação destes.

A combinação de dois corpos para formar um terceiro exige especial auxílio de circunstâncias: seja um determinado grau de calor, de sequidão, ou de umidade; seja o movimento ou o repouso; seja uma corrente elétrica, etc. Se essas circunstâncias não se verificarem, a combinação não se operará.

5. Quando há combinação, os corpos componentes perdem suas propriedades características, enquanto o composto que resulta deles adquire outras, diferentes das daqueles. É assim, por exemplo, que o oxigênio e o hidrogênio – que são gases invisíveis – quimicamente combinados formam a água – que é líquida, sólida, ou vaporosa, conforme a temperatura. A bem dizer, na água já não há oxigênio nem hidrogênio, mas um corpo novo. Se essa água for decomposta, os dois gases, tornados livres, recobram suas propriedades: já não há água. A mesma quantidade desse líquido pode ser assim, alternativamente, decomposta e recomposta, ao infinito.

6. A composição e decomposição dos corpos se dão em virtude do grau de afinidade que os princípios elementares guardam entre si. A formação da água, por exemplo, resulta da afinidade recíproca que existe entre o oxigênio e o hidrogênio; mas, se pusermos em contato com a água um corpo que tenha mais afinidade com o oxigênio do que a que este tem com o hidrogênio, a água se decompõe: o oxigênio é absorvido e o hidrogênio se liberta. Já não haverá água.

7. Os corpos compostos se formam sempre em proporções definidas, isto é, pela combinação de uma certa quantidade dos princípios constituintes. Assim, para formar a água, são necessárias uma parte de oxigênio e duas de hidrogênio. Se duas partes de oxigênio forem combinadas com duas de hidrogênio, em vez de água surgirá o deutóxido de hidrogênio – um líquido corrosivo, ainda que formado dos mesmos elementos que entram na composição da água, porém noutra proporção.

8. Em poucas palavras, está é a lei da formação de todos os corpos da Natureza. A infinita variedade deles resulta de um número pequeno de princípios elementares combinados em proporções diferentes. 127 – A GÊNESE

Por exemplo: o oxigênio, combinado em certas proporções, com o carbono, o enxofre, o fósforo, forma os ácidos carbônico, sulfúrico, fosfórico; o oxigênio e o ferro formam o óxido de ferro ou ferrugem; o oxigênio e o chumbo (ambos inofensivos) dão origem aos óxidos de chumbo, tais como o itargírio, o alvaiade, o mínio (que são venenosos). O oxigênio, com os metais chamados cálcio, sódio, potássio, forma a cal, a soda, a potassa. A cal, unida ao ácido carbônico, forma os carbonatos de cal ou pedras calcáreas, tais como o mármore, a cré, as estalactites das grutas; unida ao ácido sulfúrico, forma o sulfato de cálcio ou gesso e o alabastro; ao ácido fosfórico, o fosfato de cal, base sólida, dos ossos; o cloro e o hidrogênio formam o ácido clorídrico ou hidroclórico; o cloro e o sódio formam o cloreto de sódio ou sal marinho.

9. Todas essas combinações e milhares de outras são obtidas artificialmente nos laboratórios de química, em pequenas quantidades; já no grande laboratório da Natureza, elas se operam em larga escala.

Em sua origem, a Terra não continha essas matérias em combinação, mas tinha apenas seus princípios constitutivos volatilizados. Quando as terras calcáreas e outras, que se tornaram pedrosas com o tempo, foram depositadas depositaram na sua superfície, aquelas matérias não existiam inteiramente formadas; porém, todas as suas substâncias básicas se encontravam no ar em estado gasoso. Precipitadas por efeito do resfriamento e sob a força de circunstâncias favoráveis, essas substâncias se combinaram, segundo o grau de suas afinidades moleculares. Foi então que se formaram as diversas variedades de carbonatos, de sulfatos, etc., a princípio em dissolução nas águas, depois, depositadas na superfície do solo.

Suponhamos que por uma causa qualquer a Terra voltasse ao estado primitivo de incandescência: tudo se decomporia; os elementos se separariam; todas as substâncias fusíveis se fundiriam; todas as que são vaporáveis se evaporariam. Depois, outro resfriamento determinaria nova precipitação e de novo se formariam as antigas combinações.

10. Estas considerações provam quanto a Química era necessária para a inteligência da Gênese. Antes de conhecermos as leis da afinidade molecular, não era possível compreendermos a formação da Terra. Esta ciência lançou grande luz sobre a questão, como a Astronomia e a Geologia fizeram, de outros pontos de vista.

11. Na formação dos corpos sólidos, um dos mais notáveis fenômenos é o da cristalização, que consiste na forma regular que certas substâncias assumem, ao passarem do estado líquido ou gasoso ao estado sólido. Essa forma – que varia de acordo com a natureza da substância – é geralmente a de sólidos geométricos, tais como o prisma, o romboide, o cubo, a pirâmide. Toda gente conhece os cristais de açúcar cândi; os cristais de rocha, ou sílica cristalizada, são prismas de seis faces que terminam em pirâmide igualmente hexagonal. O diamante é carbono puro, ou carvão cristalizado. Os desenhos que no inverno 128 – Allan Kardec

se produzem sobre as vidraças são devidos à cristalização do vapor d’água durante o congelamento, sob a forma de agulhas prismáticas.

A disposição regular dos cristais corresponde à forma particular das moléculas de cada corpo. Essas partículas (infinitamente pequenas para nós, mas que não deixam por isso de ocupar um certo espaço), solicitadas umas para as outras pela atração molecular, se arrumam e justapõem segundo o exigem suas formas, de maneira que cada uma toma o seu lugar em torno do núcleo ou primeiro centro de atração e a constituir um conjunto simétrico.

A cristalização só se opera em certas circunstâncias favoráveis, fora dessas circunstâncias ela não pode ocorrer. São condições essenciais o grau da temperatura e o repouso absoluto. Compreendemos que um calor muito forte, mantendo as moléculas afastadas, não lhes permitiria condensarem-se e que a agitação, impossibilitando-lhes um arranjo simétrico, só lhes permitiria formar uma massa confusa e irregular, por isso o fato de não haver cristalização propriamente dita.

12. A lei que preside à formação dos minerais conduz naturalmente à formação dos corpos orgânicos.

A análise química mostra que todas as substâncias vegetais e animais são compostas dos mesmos elementos que os corpos inorgânicos. Desses elementos, são o oxigênio, o hidrogênio, o azoto e o carbono os que desempenham papel principal. Os outros entram como complemento. Como no reino mineral, a diferença de proporções na combinação dos referidos elementos produz todas as variedades de substâncias orgânicas e suas diversas propriedades, tais como: os músculos, os ossos, o sangue, a bílis, os nervos, a matéria cerebral, a gordura, nos animais; a seiva, a madeira, as folhas, os frutos, as essências, os óleos, as resinas, etc., nos vegetais. Assim, na formação dos animais e das plantas, nenhum corpo especial entra que igualmente não se encontre no reino mineral.118

118 O quadro abaixo, da análise de algumas substâncias, mostra a diferença de propriedades que resulta da só diferença na proporção em que entram os elementos constituintes. Sobre 100 partes, temos: Carbono

Hidrogênio

Oxigênio

Azoto

Açúcar de cana

42.470

6.900

50.630

––

Açúcar de uva

36.710

6.780

56.510

––

Álcool

51.980

13.700

34.320

––

Azeite de oliveira

77.210

13.360

9.430

––

Óleo de nozes

79.774

10.570

9.122

0.534

Gordura

78.996

11.700

––

––

ibrina

53.360

7.021

19.685

19.934